A obra “A divisão do trabalho
social”, de Émile Durkheim, trás as explicações sobre a transformação histórica
e social do Direito em relação aos sistemas de penas. Inicia com o fenômeno da
consciência coletiva, que mantém o Direito punitivo e os dogmas culturais como
defesas sociais, e finaliza com a “solidariedade orgânica”, criada a partir da
divisão do trabalho e do nascimento dos direitos humanos como base para o Direito
restitutivo, arma técnica de defesa dos direitos coletivos.
O filme “Código de Conduta”
revela-se influenciado por esses dois aspectos supracitados do Direito
contemporâneo. O personagem Clyde, que testemunha o assassinato brutal de sua
família, busca por longos anos a justiça baseada na punição passional dos criminosos
e acredita expressamente que qualquer júri popular iria apoiá-lo. Estão claros
os dogmas da consciência coletiva invocados por Clyde nesse desejo por uma
sanção extremista. Em outro lado, há o promotor de justiça Nick, que aplica
indiscriminadamente as técnicas racionais das normas do Direito, buscando
provas incontestáveis do crime para punir de forma “justa”, ou seja, de acordo
com a lei. Este é o reflexo do Direito restitutivo, o uso das ciências para
resolver transgressões sociais gravíssimas. A grande questão abordada pelo
filme é a legitimidade dos atos praticados pelo personagem Clyde, que após ver
o assassino de sua filha ganhar a liberdade, tem sucesso em acabar com a vida de
grande parte dos envolvidos no processo, dos criminosos aos funcionários
públicos, revelando-se um sociopata que coloca todos os cidadãos em risco.
O fracasso das técnicas científicas
utilizadas pela justiça para aplicar sanções aos culpados desencadeou, no
filme, uma reação passional de enormes proporções. A produção cinematográfica
deu aos personagens o destino que melhor coube a uma arte de entretenimento com
fins lucrativos. Entretanto, trazendo a discussão para nível da realidade
brasileira, seria “melhor” uma justiça restitutiva ou punitiva? O fator
“nenhuma justiça”, que podemos entender como a falha do sistema de justiça em
casos que houve crime, encadearia reações destrutivas como no longa – metragem
ou não?
O termo “melhor” empregado na
questão acima é carregado de subjetividade, porém devemos nos deter aos princípios
morais que vigoram dentro do caráter do alvo das críticas aqui encontradas: o
ordenamento jurídico vigente. De acordo com suas normas, o “melhor” traduz-se
nos direitos garantidos pela Constituição Federal: os direitos humanos,
fundamentais, protetores da dignidade humana. Assim, o Direito restitutivo
mostra-se como melhor opção para a garantia do bem-estar coletivo, sopesando os
valores do indivíduo em prol de seus direitos e da sociedade, como vemos em
vários casos dentro do Direito, por exemplo, quando a boa-fé é levada em conta,
mesmo em caso de erro. É claro que a eficácia da ciência aplicada no Direito,
da racionalização das decisões judiciais, nem sempre garantem o que é “justo”,
ou seja, o que está previsto em lei, problema este tratado no filme “Código de
Conduta”, todavia, se um órgão estatal não se empenhar em executar suas regras
de forma a enquadrar-se em uma limitação estabelecida, teríamos uma grande
insegurança jurídica e problemas sociais ainda maiores.
A expressão “nenhuma justiça”, ligada pelo filme ao
fracasso do direito restitutivo, deve ser rechaçada pelas leis de um país,
principalmente o Brasil, no qual encontramos uma Constituição analítica, minuciosamente
produzida para englobar a conduta dos indivíduos, e um alto índice de crimes,
como o homicídio. É possível a existência reações destrutivas devido às falhas
do processo restitutivo, contudo elas não são e nunca poderiam ser legítimas.
São, na verdade, desvios tanto da conduta ética normatizada pelas leis,
caracterizando assim atos passiveis de sanção, quanto da conduta social dos
bons costumes, que, além de se fazer presente no Direito, é mais ampla e
extremamente defendida pela maioria da população. O desenvolvimento do Direito
restitutivo acompanha as necessidades da sociedade e deve ser seguido pelos
órgãos responsáveis pela justiça. Com relação ao filme “Código de Conduta, a
punição tanto aos assassinos da família de Clyde quando aquela aplicada a ele,
baseada no ordenamento jurídico vigente, é legítima e “justa”, defende os direitos
do cidadão e da sociedade.
Em uma segunda análise, podemos trazer à tona, dentro
da realidade brasileira, a questão da substituição do Estado de bem-estar pelo
Estado de controle, ou seja, uma maior preferência pela punição aos
transgressores do que o investimento em prevenção. O Professor Sérgio Salomão
Shecaira (já citado por mim em postagem anterior) defende que as penas e o
sistema carcerário brasileiro não pretendem restituir o individuo a sociedade,
como é defendido pelo direito moderno, e cada instituição que forma o sistema
punitivo brasileiro e seus profissionais mantém distanciamento em relação aos
autores de crimes (artigo “A Lei e o Outro”). O “encastelamento” dos juristas
entorno das normas, expressão utilizada pelo Professor Shecaira, impede a
criação de novos métodos de se aplicar a lei e também a busca pelos princípios
básicos do Direito. O aspecto cartesiano da aplicação técnica das leis, a
matemática do Direito restitutivo, está presente, em relação ao filme já
citado, na atuação do promotor de justiça, que procura condenar os acusados da
forma mais direta possível, sem se influenciar de forma definitiva pelos apelos
emocionais de Clyde. A renovação do Direito, nesse caso, foi anulada pela
normatividade das decisões e seu engessamento pela ciência. Está claro que a
utilização do Direito restitutivo é a evolução do Estado de Direito, entretanto
deve-se abrir caminho para as novas ideias de cunho social que auxiliem a
estruturação do Estado de bem-estar.
O seguinte trecho foi retirado do artigo “A opção
pelo calabouço”, do Professor Shecaira, e prova que a preferência pela punição
é causadora do Estado de controle e revela que os gastos com o excesso de
punições interferem nos investimentos em ações sociais.
Algumas dimensões da substituição do
Estado de bem-estar pelo Estado de controle devem ser destacadas. Houve uma
expansão vertical por meio da hiperinflação carcerária (meio milhão no Brasil);
houve uma expansão horizontal de pessoas sob controle (milhares de pessoas
cumprem penas alternativas em nosso país); há um crescimento notável de
dotações orçamentárias prisionais em detrimento dos gastos sociais; há uma
espécie de "ação afirmativa carcerária", isto é, pobres e negros
estão mais representados na população carcerária do que a elite branca; houve
uma universalização desse fenômeno, pois foi uma constante em várias nações.
REFERÊNCIAS: