A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6987, ajuizada pelo partido Cidadania em agosto de 2021, tem por objeto o tratamento pela jurisprudência de práticas que constituem o crime de racismo como “injúria racial”, e pretende a declaração de inconstitucionalidade imparcial do art. 140 §3º, do Código Penal, utilizado para fundamentar as inúmeras decisões judiciais que desclassificam denúncias de racismo como casos de injúria racial. O requerente aponta que, em um flagrante descumprimento do princípio da proporcionalidade enquanto vedação à proteção insuficiente, esse costume jurisprudencial tem ocasionado uma impunidade em relação ao racismo.
Primeiramente, há que se esclarecer em que consiste a conduta em questão. A prática costumeiramente tratada como “injúria racial” é a de ocasionar ofensa à honra de um indivíduo, tendo como uma de suas bases o grupo racial a que ele pertence.
A distinção que se faz entre injúria racial e racismo se apoia no argumento de que este consiste em um ataque à toda a coletividade, enquanto aquela é o ataque à honra subjetiva de um indivíduo em específico. O requerente observa, de modo lógico, que tal diferenciação não tem razão de ser, pois um ataque à honra subjetiva de uma pessoa em função de seu pertencimento a um grupo racial minoritário é precisamente uma das manifestações do racismo – aliás, a mais comum no Brasil, conforme demonstrado na petição inicial.
Lamentavelmente, a situação questionada pela ADI não existe por acaso. O cenário em que ora se encontra o País no que se refere ao racismo já é, decerto, mais positivo que no passado, mas ainda há, em todas as esferas do Poder Público, uma forte resistência à aceitação de minorias raciais como seres humanos verdadeiramente iguais em valor a todos os demais. Persistem a desumanização e o “alterocídio”, isto é, a aniquilação, dentro da mente racista, da própria existência do indivíduo negro ou indígena pelo fato de ser ele, para o racista, um outro, um algo diferente de si próprio. Portanto, em um país em que essas tendências ainda se mostram sistemicamente presentes, não é de se estranhar o fato de que o Poder Judiciário tem desclassificado tantas denúncias de racismo como sendo ocasiões de injúria racial.
Recorrendo-se a um conceito do grande sociólogo Pierre Bourdieu, o fato é que o espaço dos possíveis no Brasil no que tange ao racismo, sobretudo no Poder Judiciário, ainda abrange de forma reduzida as tendências progressistas, embora observem-se, pontualmente, e de modo especial no Supremo Tribunal Federal, decisões nesse sentido. É o caso, por exemplo, do Habeas Corpus 154.248, que foi denegado, por considerar-se injúria racial praticada pelo impetrante como tendo “todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo”. Além disso, em hipótese alguma se poderia desconsiderar as conquistas que têm sido obtidas pelas lutas do movimento negro, que têm um relativo alcance sobre o Poder Judiciário: se, por um lado, vimos, nos últimos anos, uma tendência por parte da maioria dos ministros do STF a votos que prezem pela garantia de direitos às minorias, por outro, considerando-se a os tribunais e juízes do país em sua totalidade, constata-se que urge a implementação de profundas mudanças. O Judiciário brasileiro hoje é composto por uma esmagadora maioria de brancos, principalmente nas instâncias superiores, que são expostos, durante sua formação, a uma ainda mais esmagadora maioria de pensadores e juristas brancos, e que, portanto, refletem, em sua maioria, a visão de mundo de uma elite branca. Trata-se, em suma, recorrendo novamente à obra de Bourdieu, do habitus de uma burguesia branca.
Além da crítica de que a pretensão de tratar a injúria racial como o racismo que de fato é seria um anseio punitivista, quando na realidade, a busca pelo tratamento da injúria como crime de racismo é uma imposição lógica, é feita com alguma frequência a crítica de que a preocupação com práticas racistas no Brasil decorre da importação, por assim dizer, de epistemologias do norte. Em outras palavras, trata-se, segundo os críticos, de uma tentativa de trazer para a realidade brasileira ideias trabalhadas pela Academia estadunidense e que somente se aplicariam à realidade de lá. É inegável que, historicamente, o sul global importa as experiências do norte, consequência da história de domínio deste sobre aquele, seja por meio da colonização propriamente dita, como no caso dos países europeus, seja pelo imperialismo, como no caso dos Estados Unidos, que tem além de sua face bélica, a cultural. Sara Araújo explora muito bem esse fato, mostrando que o próprio projeto de modernidade difundido e amplamente aceito hoje é nitidamente eurocêntrico. Segundo a autora, “O Sul foi duplamente silenciado: porque alegadamente não tinha nada para dizer e porque não tinha linguagem para o fazer.” Entretanto, a alegação de que esta intensificação do debate das questões raciais no Brasil decorre de um desejo de reproduzir uma epistemologia do norte é tão absurda que justifica até mesmo suspeitas em relação às intenções do interlocutor: a história das minorias raciais em nosso país e mesmo sua situação na atualidade justificam de forma mais que suficiente a preocupação com questões como a ADI 6987. Não é exclusivo da realidade estadunidense o histórico de escravidão e desumanização do negro, e a persistência desta última até os dias de hoje.
Não obstantes as insistentes críticas à reivindicação do tratamento da injúria racial como racismo e a resistência do Judiciário de modo geral ao debate a respeito do racismo, é possível concluir esta análise com uma perspectiva mais positiva para o futuro, para a qual revelam-se especialmente valiosas as considerações de Antoine Garapon. O magistrado enfatiza, repetidamente, a importância dos movimentos sociais, e da judicialização de suas demandas, para a própria democracia. Mais do que isso, ele observa que esse recurso ao Poder Judiciário para a obtenção de respostas a conflitos referentes aos próprios valores fundantes de uma sociedade – valores esses traduzidos, ao menos parcialmente, pelos princípios constitucionais – tende a aumentar em frequência. No Brasil, o movimento negro, assim como tantas outras lutas, como a feminista e a da comunidade LGBTQIA+, tem se fortalecido ao longo dos últimos anos, apesar dos – ou talvez em razão dos – inúmeros obstáculos encontrados. Além disso, há que se destacar a atuação recente do Supremo Tribunal Federal no sentido de buscar a garantia de direitos e a afirmação de valores progressistas. Portanto, não restam dúvidas de que é possível vislumbrar, para o nosso país, um futuro mais promissor no que se refere à garantia de direitos humanos, inclusive o direito das minorias raciais à proteção integral de sua pessoa e identidade.
Helena de Battisti Almeida