Ao propor uma Revolução Democrática do Direito, Boaventura de Sousa Santos trata sobre questões problemáticas do universo jurídico. Entre elas, a visão e ação puramente técnico-burocrática que a maioria dos operadores têm frente ao Direito, o que torna o processo jurídico menos justo e eficiente, uma vez que não conseguem analisar profundamente todas as perspectivas que envolvem os litígios a que são apresentados. O Direito, porém, tem a função de resolver os conflitos dentro de uma sociedade, buscando a melhor solução para ambos os lados. Deve servir para aliviar sofrimentos, não os causar ou intensificar. Portanto, jamais pode se ausentar de um estudo profundo sobre a realidade social de cada caso e cada parte envolvida nele, para resguardar-se a uma posição de ciência exata e puramente técnica que decreta automaticamente a norma prescrita sem nenhuma adaptação específica para cada situação. Esta conduta fere os princípios e as intenções do exercício do Direito. Mesmo assim, é comum que aplicadores, ajam de tal maneira, como veremos ao analisar o caso da reintegração de posse da fazenda Pinheirinho em São José dos Campos.
A magistrada do caso Pinheirinho, Márcia Faria Mathey Loureiro, defende que deve fazer uma execução puramente técnica da lei e que não cabe ao judiciário atuar sobre as questões sociais e a luta pelo direito à moradia, a ele não cabe agir por tais causas, nem ao menos com um olhar solidário por elas. Para ela, ele deve apenas assegurar o direito da propriedade.Entre as formas de manifestação dessa cultura jurídica, Santos cita a desresponsabilização perante os maus resultados do julgamento. Os juízes impõem a norma da forma desejada e afastam-se, já que não viverão as consequências do cumprimento da ordem e é quase nula a possibilidade de sofrerem alguma sanção por uma má aplicação. Ou seja, não importa se milhares de famílias ficarão desabrigadas, morando na rua, enquanto a juíza e o proprietário milionário do terreno continuarão em suas casas e vidas confortáveis. Para a magistrada, isso não é questão a ser tratada. A única coisa que ela deve fazer é proferir a sentença sem analisar a fundo a realidade vivida e o grande impacto que sua decisão terá na vida de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Porém, em realidade, a aplicação nunca é desvinculada de uma ideologia. Quando os operadores do direito desejam se afastar das demandas e movimentações sociais, acabam replicando o pensamento da classe dominante, o senso comum influenciado pela mídia que esta controla. Nesse caso, a juíza agiu sob a influência da ideia de que os trabalhadores do assentamento Pinheirinho - assim como todos os integrantes dos movimentos que lutam pelo direito básico da posse da terra, como o MST - são invasores, insuflados por interesses externos, que roubam propriedades que foram, de forma árdua e honesta, compradas pelos donos. Quando, na verdade só estão ali pois a posse original do terreno foi adquirida de forma ilegal e porque não havia mais nenhuma opção para conseguirem um lugar para se abrigarem que não fosse por meio da ocupação daquela área abandonada. Ao agir sob estas concepções, a juíza trabalha para favorecer membros da burguesia, mesmo que estes também estejam em situação de ilicitude, e criminalizar a luta de trabalhadores por dignidade.
Em contrapartida a este comportamento de muitos operadores do direitos, que se torna tão prejudicial para o exercício democrático, Boaventura de Sousa Santos exemplifica a ação das defensorias públicas. Estas, por estarem vinculados à causa para além de interesses puramente econômicos, conseguem operacionalizar além desta lógica. Podem estar em contato real com as bases sociais, escutando, incorporando e lutando pelas demandas das populações marginalizadas; sendo uma das poucas oportunidades de defesa dessa classe frente aos abusos sociais e estatais. Assim, as defensorias públicas têm a capacidade de atuar na sociologia das ausências e enxergar além, identificando novos conflitos e maneiras para lidar com eles, de forma que o Direito tradicional e enrijecido em tribunais e escritórios particulares ainda não consegue. Foi o que aconteceu no processo de Pinheirinho. Quem fez uma excelentíssima defesa dos moradores do bairro, os orientou sobre seus direitos e sobre os abusos que sofriam, levou as causas de pessoas cotidianamente invisibilizadas e silenciadas até as instâncias federais e quem, mesmo depois da reintegração de posse, continuou lutando pelas famílias do assentamento e denunciando as atrocidades que foram cometidas contra elas, foi inteiramente a defensoria pública. É essa sensibilização que ocorre quando se trabalha diretamente com os movimentos sociais e as classes oprimidas que Sousa Santos defende para melhorar a qualidade da justiça, tornando-a mais democrática - e justa. Por isso, para ele, deve haver uma reformulação do ensino jurídico que faça com que estudantes e formados estejam continuamente em contato com as demandas da população e que vejam o Direito e sua execução como um campo essencialmente de luta pelo atendimento delas, não apenas como um espaço elitizado - pensamento que muito ilude e atrai novos operadores.
Sofia Moreira Pinatti
Nota da Monitoria: texto enviado por e-mail no 06 dez. 2021, 12h38
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