As
obras de Émile Durkheim focaram em entender os fatores que garantem a unidade
social em períodos de mudança. Em suas investigações, Durkheim constatou que,
conforme as sociedades se tornam mais elaboradas e centradas no indivíduo, os
vínculos tradicionais que conectavam as pessoas, como fé, moral compartilhada
e tradições, perdem relevância, resultando em um estado de anomia. Este
conceito refere-se à falta ou à debilidade das normas sociais, o que pode
provocar sensações de confusão, solidão e insegurança. Nesse contexto, a pessoa
se depara com um ambiente onde as referências coletivas são frágeis, e o
sentimento de inclusão social se esvazia.
É exatamente nesse
cenário de diminuição da consciência coletiva que o narcisismo patológico pode
ser visto como um fenômeno social e não apenas como algo psicológico. A pessoa
narcisista, que se concentra de maneira exagerada em sua autoimagem e na busca
por aprovação dos outros, parece emergir como um reflexo de uma sociedade que
enfrenta a desregulação moral e a exaltação extrema do individualismo. A falta
de relacionamentos profundos e a ausência de um senso de comunidade podem fazer
com que o indivíduo busque constantemente validação para preencher um vazio
existencial – uma reativa individual a um desafio coletivo. Dessa forma, o
narcisismo não se apresenta apenas como uma condição pessoal, mas pode ser
interpretado, à luz dos pensamentos de Durkheim, como um sinal da anomia atual.
Durkheim caracteriza os
fatos sociais como formas coletivas de atuar, raciocinar e sentir que impõem
uma pressão sobre os indivíduos. Apesar de o narcisismo patológico se
manifestar no nível pessoal, pode ser entendido, à luz do pensamento
durkheimiano, como um fenômeno social que surge, visto que se repete entre
várias pessoas dentro de um mesmo contexto cultural e histórico. A adoração à
aparência, o incessante desejo por validação e a superficialidade nas
interações sociais são práticas comuns que se espalham principalmente em sociedades
com um alto nível de individualismo. Esses comportamentos, mesmo que pareçam
ser escolhas individuais, são influenciados por pressões sociais discretas,
como normas estéticas, expectativas de sucesso e uma competitividade intensa,
fatores que funcionam como regras não escritas, mas amplamente aceitas.
Um aspecto importante é
a mudança de solidariedade mecânica para solidariedade orgânica, conforme
caracterizado por Durkheim, que representa a evolução das comunidades
tradicionais em direção às contemporâneas. Na solidariedade mecânica, as
pessoas estão intensamente unidas por crenças e valores compartilhados. Por
outro lado, na solidariedade orgânica, típica das sociedades modernas, as
conexões sociais são menos robustas e fundamentam-se na interdependência e na
especialização do trabalho. Dentro desse cenário, o indivíduo pode sentir um
senso de separação e isolamento, o que leva à formação de uma identidade
voltada para o “eu” e a autorreferência. O narcisismo extremo pode, portanto,
ser uma maneira de tentar superar essa fragilidade nas relações sociais,
elevando a própria autoestima e buscando uma autossuficiência que não é real.
Durkheim acreditava que
fenômenos que parecem prejudiciais têm, na verdade, uma função social, atuando
de maneira relevante dentro do contexto social. Com base nessa ideia, é
possível considerar o narcisismo extremo como uma forma de adaptação – mesmo que
não saudável – à sociedade atual, que é caracterizada por expectativas
impossíveis de alcançar em termos de sucesso e felicidade. Contudo, o que
inicialmente pode parecer benéfico, como a valorização própria e a busca por
reconhecimento, torna-se prejudicial quando ultrapassa os limites da regulação
social e afeta negativamente as relações interpessoais. Assim, o narcisismo
revela um conflito entre o desejo individual e a necessidade de pertença social, uma tensão que Durkheim já previu ao analisar os perigos da anomia.
Em "O
Suicídio", Durkheim classifica diferentes tipos de suicídio com base na
conexão do indivíduo com a sociedade. O suicídio egoísta acontece quando os
vínculos sociais se enfraquecem e a pessoa se sente excluída da comunidade,
perdendo a sensação de pertencimento. Por outro lado, o suicídio anômico surge
da falta de normas definidas, comum em períodos de crise ou transformação
social. O narcisismo patológico, que intensifica o isolamento emocional e a
autossuficiência do indivíduo, pode estar intimamente ligado a esses dois tipos
de suicídio. O indivíduo narcisista, por não conseguir formar relações
profundas e duradouras com outros, tende a experimentar um vazio existencial e
insatisfação constante em relação a expectativas sociais irrealistas. A busca incessante
por validação externa, quando não atendida, pode resultar em sentimentos de
insignificância, fracasso e, em situações extremas, levar à ideação ou ao ato
suicida. Portanto, a interpretação durkheimiana permite entender o narcisismo
patológico não apenas como uma anomalia psicológica, mas também como um sinal
de um tecido social comprometido e desestruturado.
Dessa maneira, sob a
perspectiva da teoria de Durkheim, o narcisismo extremo pode ser visto como um
reflexo social das mudanças contemporâneas, onde a diminuição da conexão
social, a fragilidade das normas coletivas e o aumento do individualismo
resultam em subjetividades vulneráveis e necessitando de um senso de
pertencimento. Assim, o indivíduo narcisista não é apenas uma exceção, mas sim
um resultado plausível de uma sociedade em que a solidariedade se fragiliza e o
eu se torna a única fonte de valor. Ao ligar o narcisismo à anomia e a formas
de suicídio egoístas, Durkheim nos incita a reconsiderar a função da sociedade
na origem do sofrimento psicológico. Dessa forma, é fundamental restaurar laços
sociais significativos e referências coletivas robustas como maneiras de
enfrentar os desafios das patologias modernas.
Maria Eduarda Siqueira Alves dos Santos - Direito - 1° ano - Matutino