As incorporações ativas de elementos assinalados pelas fundamentações do estruturalismo construtivista enunciam a superação de modelos vinculados à esterilização da complexidade a qual considera-se no corpo social. A condição, quando vista em um prisma objetivista, poderia designar-se, até mesmo a demarcar elementos ou estruturas de sistemas sociais, a um viés simplista, paralelamente a projetar-se, em uma abordagem prática-estrutural da realidade, como forma de um universo conflituoso, dinâmico e envoltório. A vista de uma intersecção entre os agentes envolvidos na sociedade, tange necessária a conforme posição da ciência jurídica como um campo irredutível, porém essencial ao Estado e seu funcionamento.
São visíveis, às consequências da ativação constitucional brasileira, a política e o seu sentido figurador em parte do judiciário. A base limitante a qual encontram-se as ações reproduzidas em sociedade é o direito, afirmando sua disposição determinadamente plural cujas "práticas e os discursos [...] são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas" (BOURDIEU, p, 211). O campo jurídico, entretanto, não é hermético a apenas julgar ou garantir direitos aos cidadãos; sua resolução afirma um aformoseamento específico, uma concepção própria gerativa e praxiológica de suas forças. Trata-se, portanto, útil a compreensão do campo e das forças do direito para revestir as finalidades sociais e evitar um reducionismo apenas funcional seja através da atribuição economicista instrumental do direito ou tornar absolutas as leituras internas do direito.
A dimensão conceitual bourdieusiana operacionaliza no contexto social uma expansão neste confronto sistemático dentro dos campos. Para analisar um enquadramento exemplificado na abrangência articulada da vivência, a reinterpretação do direito e da instrumentação sociológica serve-se para discutir orientações teóricas de casos como o aborto de anencéfalos, percebido entre o contexto da dignidade da pessoa humana e do universo social sucedido em campos. Em razão das conquistas de posições materiais e simbólicas no campo jurídico e judicial, explicita-se primeiramente útil o desenvolvimento de uma precisão quanto à força do direito e a significação deste mesmo campo.
Dentre vários, todos campos abordam-se em um senso comum, generalizações ou nomos que os governam. Assegura-se ainda, quanto à teoria expressiva do exercício em um campo indeterminado, a parte de conflitos, os quais evidenciam-se ou não através da violência simbólica, isto é, a dominação de uns e a cumplicidade de outrem em meio a conformidades complexas. Refletem-se, portanto, na vida social, os interesses de campo e suas especificidades mediante à utilização do habitus, capital e violência simbólica.
De certo modo, compete-se novamente ao esclarecimento da abrangência de situações e casos na sociedade contemporânea, como ao caso da ADPF 54. A arguição que envolve a interrupção terapêutica da gestação de um feto anencéfalo, quando vista em seu teor completo, envolve três significações distintas e complexas entre si internamente e externamente; de modo primeiro, as composições conferidas pela lei, as quais discutem-se perante princípios fundamentais, os quais enraízam-se nas delimitações possíveis da sociedade; em segundo, tem-se as determinações da própria saúde, discute-se noções quanto ao reconhecimento de fetos anencéfalos, a possibilidade de vida extrauterina, argumentos os quais inclusive conflitam-se em suas conclusões e estruturam o domínio para decisões diferentes; por último, mas não menos relevante, puramente a sociedade, em pertinência a designar o papel feminino das gestantes, e sua moral, isto é, as noções que formam-se do corpo e a ética própria dos primeiros esboços de uma emancipação propriamente subjetiva, no sentido de direitos e da liberdade.
À guisa de integrar o campo jurídico, diz-se que as decisões previstas ao judiciário brasileiro envolvem as elementaridades do campo jurídico. Processos linguísticos exercem, portanto, grandes investidas em dizer o direito, estreitando a postura e a consagração de corpus reiteradamente interpretados pelos juristas. Assim afirmando Bourdieu: "Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica[...] aquilo que se chama de 'o espírito jurídico' ou 'o sentido jurídico' e que constitui o verdadeiro direito de entrada no campo( evidentemente, com uma mestria mínima dos meios jurídicos acumulados pelas sucessivas gerações, quer dizer, do corpus de textos canônicos e do modo de pensamento, de expressão e de ação, em que ele se reproduz e o que o reproduz) consiste precisamente nessa postura universalizante" (BOURDIEU, p. 216). Observa-se novamente nas decisões do STF são elaboradas em palavra da lei concernentemente ao campo jurídico: a própria utilização do termo interrupção em detrimento do termo aborto, articula a não descriminalização do mesmo. A retórica é, portanto, objetiva e busca efeito de neutralização, convergindo em recursos de fala e consensos éticos presentes no corpus.
Há uma luta simbólica em representar os recursos e mobilizar as desigualdades capitais em qualquer campo, representando igualmente ao direito uma adaptação às circunstâncias de apenas uma busca emblemática da impessoalidade. O triunfo destas desigualdades de forças as quais encontram-se no campo, instrumentalizam o irmanamento hermenêutico correspondente da historicização das normas. Afirmando: "A interpretação opera a historicização da norma, adaptando as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou o que é caduco" (BOURDIEU, 223). Deste modo e retornando ao caso da ADPF 54, o Código Civil, ao iniciar a personalidade civil a partir do nascimento e pôr a salvo, através da lei, os direitos do nascituro (Art. 2º, CC), verticaliza a amplitude da interpretação acerca do feto após o seu nascimento; abre-se à prática a ação histórica na análise da norma e o exercício de forças cabíveis de mudanças. A defrontação histórica, todavia, é limitada pelo uso de poderes e forças desiguais. Trata-se da instituição do monopólio, a qual neutraliza e distancia a utilização do direito da ambiguidade externalista e internalista, ressaltadas no início do texto. A adaptar, puramente externalistas seriam os complexos anseios sociais, para o marxismo, por exemplo, intrínsecos às definições instrumentais econômicas.
A resposta final em conferência externa, em natureza permissiva, acerca da interrupção da gestação de fetos constrói-se no âmbito de estruturas já estabelecidas ao mesmo tempo que atua em sua força de produzir efeitos e institui-los em nomos. Por este poder, Bourdieu vincula a nomeação, afirmando: "O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas [...] é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas a condição de se não esquecer que ele é feito por este" (BOURDIEU, p. 237). Compreende-se, em distinções alternantes do próprio direito quanto a sua realidade social, uma força que atravessa seu próprio campo e impõe-se em uma estruturação geral. Ainda assim, assegura-se o autor que não trata-se de um ato proveniente de hermetismo, cuja tendência alienante é apenas a dominação, mas sim que, por meio de sua universalização, atinge-se a manutenção e o funcionamento das lógicas expressivas no espaço social.
Referências:
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. [Capítulo VIII – "A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico", p. 209-254]
Marco Antonio Raimondi
Direito Noturno - XXXV