Historicamente, no Brasil, a
distribuição de terras é extremamente desigual. Desde os primórdios da
colonização do ex Pindorama, com os sistemas de sesmarias e capitanias
hereditárias, grandes extensões de terras foram atribuídas a uma minoria de
alto poder aquisitivo, em detrimento das massas. Posteriormente, essa discrepância
no acesso à terra, devido a políticas estatais, foi perpetuada no país, a
exemplo da Lei de Terras no século XVIII e da desapropriação de camponeses na
Guerra do Contestado, o que indica a não representatividade do povo, justamente
por quem deveria refleti-los. Boaventura de Sousa Santos aponta esse quadro
como direito configurativo, ou seja, como o direito pode refletir as relações
desiguais da sociedade em seu funcionamento e em suas decisões. Assim sendo,
para uma mudança em prol da democracia, o direito deve ser modificado e
reconfigurativo, de forma a desestabilizar as desigualdades dessas relações no
campo jurídico.
Essa reconfiguração pode ser
exercida através da ação dos movimentos sociais, por Boaventura classificados
em velhos, novos e novíssimos. Os movimentos novos, surgidos em meados das
décadas de 1960 e 1970, valorizam identidades e questões culturais, além de reconhecer
o "status quo" para modificá-lo, participando do direito. Já os movimentos
novíssimos, mais recentes que os anteriores, negam o “estado das coisas” da
sociedade, de forma a negligenciar a possibilidade de participação no direito
para a efetivação de suas lutas.
Nessa perspectiva, o Movimento dos
Sem Teto (MST) atua sem reconhecer a legitimidade das posses desiguais
vigentes, e ocupam propriedades a fim de cumprir suas funções sociais. Essas
ocupações podem ser exemplificadas pela instalação dos manifestantes na Fazenda
Primavera, cuja posse era atribuída a uma minoria de alto poder aquisitivo, que
não efetivava a função social prevista na Carta Magna do Brasil. Essa
negligência dos proprietários, de um requisito democrático primordial, é
concretizada com a negação dos mesmos acerca da vistoria do INCRA, e tentava
ser ocultada com argumentos em prol do agronegócio, como beneficiador de todas
as classes sociais.
Nesse contexto, o judiciário, com
seu poder hermenêutico das leis, legitimou a ocupação do MST, em detrimento dos
interesses da classe minoritária, porém dominante dos fazendeiros da Primavera.
Esse notório passo para a Democracia de fato (para além de uma “cidadania de
papel”) indica uma reconfiguração do Direito emancipatório, em oposição ao
Direito configurativo de continuidade e reflexo das desigualdades econômicas e
sociais entre as massas e os historicamente privilegiados.
Portanto, o julgado da Fazenda
Primavera pode ser plenamente relacionado às ideias de Boaventura de Sousa
Santos, além de ser um exemplo de conquistas populares e revolucionárias.
Giovana Fujiwara - Direito diurno
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