Em 2001, uma propriedade em Passo Fundo (RS) foi invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tal território é conhecido por 'Fazenda Primavera'; logo após a invasão ser deflagrada, os detentores da propriedade entraram com liminar para a reintegração de posse, sendo essa deferida inicialmente; a fim de manterem a invasão e posse do local, os esbulhadores entraram com recurso para a revogação da liminar anterior, o qual foi concedido; por fim, com o objetivo de conseguir novamente a liminar de reintegração de posse, os ditos posseiros ajuizaram um Agravo de Instrumento, o qual não obteve provimento, levando à vitória do MST. Ao observar o caráter que foi dado a essa decisão, nota-se uma nova tendência do Direito, a qual trata-se da defesa de minorias e de movimentos sociais, demonstrando, dessa forma, o Direito Reconfigurativo concebido nas reflexões do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. O já citado Direito Reconfigurativo é aquele que transforma o Direito conservador de caráter hegemônico (beneficia certos grupos) em Direito não hegemônico que visa à igualdade, esse Direito tem se tornado cada vez mais predominante graças à Constituição de 1988 que focou muito no cumprimento da função social da propriedade (pontuado no art. 5° XXIII – direito fundamental), sendo essa a pauta e principal argumento dos invasores participantes da causa do MST no referido caso. Posto isso, verifica-se as teorias de Boaventura que legitimam e dão substância ao Direito Reconfigurativo na conjuntura da 'Fazenda Primavera', tratadas em duas esferas: judiciais e extrajudiciais.
Judiciais. Para converter o Direito hegemônico em não hegemônico, são necessárias as ferramentas de cunho jurídico, de forma que o MST tem feito exacerbado uso delas; no caso da ' Fazenda Primavera', foi feito o uso de 5 ferramentas já previstas na análise de Boaventura: o recurso de Agravo de Instrumento, a reinterpretação da lei constitucional e processual, os direitos humanos hierarquicamente superiores ao direito de propriedade, o cumprimento da função social da propriedade e o exercício efetivo da posse. Fazendo uma análise ordenada, primeiro e logo de início observa-se o uso do Agravo de Instrumento, no entanto é utilizado de forma diferente da prevista por Boaventura, já que Boaventura pronuncia que o MST faz o uso do Agravo para conseguir a sua manutenção na propriedade e na conjuntura os donos da propriedade ajuizaram o Agravo, de modo a conseguir a reintegração da terra, apesar disso ainda pode ser considerado como instrumento a favor do MST, dado que o Agravo de Instrumento foi indeferido. Segundo, a reinterpretação da lei constitucional e processual foi crucial para a vitória do MST pelo fato de ser basilar uma nova reinterpretação acerca dos artigos 926 ao 933 do CPC, os quais versam sobre a posse como uma simples relação entre coisa e indivíduo, de maneira que o magistrado deve interpretá-los dando vida ao conceito de função social da propriedade. Terceiro, a superioridade dos direitos humanos em relação aos direitos de propriedade é também determinante para a causa do MST, em virtude da disposição e manutenção da dignidade da pessoa humana e das mínimas condições de vida dos invasores contra o direito de propriedade sem englobar a posse efetivamente. Quarto, o cumprimento da função social da propriedade é definitivamente o argumento mais empregado, já que está previsto na Constituição de 88 e é uma forma de destituir a posse ao afirmar que o dono da área não a utiliza para produzir algo para a sociedade, levando a propriedade a disposição da reforma agrária. Quinto, o exercício efetivo da posse é algo que requer comprovação, então o MST se aproveita disso e pede comprovação como pediu no caso, de forma que é preciso ter o animus domini para ter a posse legítima e no caso não havia isso. Por fim, é verificada a enorme presença dos meios judiciais em detrimento da causa do MST.
Extrajudiciais. Boaventura elenca três meios extrajudiciais de concretizar o Direito Reconfigurativo, mas só dois são encontrados evidentemente no julgado da 'Fazenda Primavera': a formação técnica e política dos advogados e a ação coletiva. O primeiro se trata da formação ativa do advogado, que procura cursos de pós-graduação, mestrado ou doutorado, sendo assim sempre alvo de novos conhecimentos e desenvolvendo uma contínua reflexão política acerca da situação de desvantagem em que muitas pessoas se encontram, reflexões sobretudo de cunho social, repercutindo num profissional mais justo, constatado no referido julgado pelo teor social da decisão. Já o segundo se trata das iniciativas do próprio advogado, o qual procura indivíduos com causas sociais para ajuizar ações de âmbito coletivo e social, sendo constatado no julgado pela existência da causa do MST apoiada por um advogado a par do cenário social envolvido e ajuizando ações em nome desses indivíduos por um bem maior. Por fim, é verificada também a imprescindibilidade dos meios extrajudiciais, já que esses são propriamente ditos de teor social.
Dessarte, a decisão 'Fazenda Primavera' a favor dos integrantes do MST demonstra um avanço do Direito Reconfigurativo, observada a causa do MST em prol de um bem maior não hegemônico, buscando sobretudo a igualdade, no caso, da distribuição de terras; o dito Direito Reconfigurativo está se fazendo valer por meios de âmbitos judicias e extrajudiciais de acordo com a análise de Boaventura de Sousa Santos, destacando os dois âmbitos como basilares para a construção fundada do Direito Reconfigurativo.
Brianda Invernizzi C. Soto - 1° Diurno
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