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segunda-feira, 2 de julho de 2018

Existem de fato conflitos entre direitos de propriedade e função social da propriedade?


A mais recente constituição do país (1988), nos trouxe um dispositivo que até então parecia inédito para as normas estatais: a função social da propriedade. Segundo tal conceito, uma propriedade deveria não apenas cumprir com seus aspectos formais (documentação, impostos, etc.), mas também de uma maneira material: esta deveria ser de alguma forma produtível e constantemente utilizada pelo seu proprietário.

Esta imposição legal vem sendo constantemente evocada por ativistas nas defesas jurídicas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos casos mais bem-sucedidos nesse aspecto é o da Fazenda Primavera, cuja reintegração de posse foi legalmente negada pois o alegado proprietário não conseguiu provar que efetivamente mantinha posse sobre aquela propriedade.

Boaventura de Sousa Santos, em sua análise das estratégias jurídico-políticas do MST, falará em uma “concepção liberal e individualista dos direitos de propriedade em vigor no Brasil”[1]. O autor também aponta conflitos entre direitos de propriedade e a já mencionada função social da propriedade, onde a segunda deverá prevalecer por estar em conformidade com os direitos humanos. O que tentarei, de forma muito resumida, é demonstrar que a dita “função social da propriedade” estaria em plena conformidade até mesmo com as doutrinas liberal e libertária se estas fossem seguidas à risca, o que, ao meu ver, faz Boaventura estar equivocado neste ponto em específico.
Algo parecido com a função social da propriedade já havia aparecido em escritos liberais quase 300 anos da Constituição de 1988 ser promulgada. Se analisarmos John Locke, um dos liberais que mais versou sobre os direitos de propriedade, veremos que suas palavras são nítidas:

“(...) cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou.”[2]

Não apenas essa afirmação de Locke estaria em pleno acordo com a função social da propriedade, mas também com um dos lemas já usados pelo MST: “terra para quem nela trabalha”.
Se avançarmos um pouco mais na história, chegando aos herdeiros intelectuais dos liberais, os libertários, veremos que mesmo autores mais radicais como Murray Rothbard concordam com a visão de que só é possível garantir o direito de propriedade enquanto ocupa-se e dá-se uma finalidade a ela:

“O homem vem ao mundo com apenas ele próprio e o mundo ao seu redor — a terra e os recursos naturais que lhe são dados pela natureza. Ele pega estes recursos e os transforma, através de seu trabalho, sua mente e sua energia, em bens que são mais úteis para o homem. Se um indivíduo, portanto, não pode possuir a terra original, ele tampouco poderá, no sentido pleno, possuir qualquer um dos frutos de seu trabalho. O fazendeiro não poderá ter a propriedade do trigo que colher se ele não puder ter a posse da terra na qual aquele trigo cresceu. Agora que seu trabalho foi misturado de maneira inextricável com a terra, ele não pode ser privado de um sem ser privado do outro. Além do mais, se um produtor não tiver direito aos frutos de seu trabalho, quem deverá ter?”[3]

Vemos desta forma, ainda que de maneira bem resumida, que mesmo a doutrina liberal pode estar em conformidade com a ideia de os direitos de propriedade serem garantidos apenas a quem comprovadamente pode manter posse dos mesmos, sendo a defesa de um direito de propriedade absoluto e irrestrito um ataque não apenas aos direitos humanos, mas à própria tradição liberal/libertária.


Felipe Bucioli - Turma XXXV - Noturno


[1] Vide p. 321 na secção “Estratégias jurídicas: o papel dos advogados populares”.
[2] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa (Petrópolis, RJ: Vozes, 1994), p. 98.
[3] ROTHBARD, Murray N. Por uma nova liberdade: o manifesto libertário. Tradução de Rafael Sales de Azevedo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013, p. 50.

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