A mais recente constituição do
país (1988), nos trouxe um dispositivo que até então parecia inédito para as
normas estatais: a função social da propriedade. Segundo tal conceito, uma propriedade
deveria não apenas cumprir com seus aspectos formais (documentação, impostos,
etc.), mas também de uma maneira material: esta deveria ser de alguma forma
produtível e constantemente utilizada pelo seu proprietário.
Esta imposição legal vem sendo
constantemente evocada por ativistas nas defesas jurídicas do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos casos mais bem-sucedidos nesse
aspecto é o da Fazenda Primavera, cuja reintegração de posse foi legalmente
negada pois o alegado proprietário não conseguiu provar que efetivamente
mantinha posse sobre aquela propriedade.
Boaventura de Sousa Santos, em
sua análise das estratégias jurídico-políticas do MST, falará em uma “concepção
liberal e individualista dos direitos de propriedade em vigor no Brasil”[1].
O autor também aponta conflitos entre direitos de propriedade e a já mencionada
função social da propriedade, onde a segunda deverá prevalecer por estar em
conformidade com os direitos humanos. O que tentarei, de forma muito resumida,
é demonstrar que a dita “função social da propriedade” estaria em plena conformidade
até mesmo com as doutrinas liberal e libertária se estas fossem seguidas à
risca, o que, ao meu ver, faz Boaventura estar equivocado neste ponto em
específico.
Algo parecido com a função social
da propriedade já havia aparecido em escritos liberais quase 300 anos da Constituição
de 1988 ser promulgada. Se analisarmos John Locke, um dos liberais que mais
versou sobre os direitos de propriedade, veremos que suas palavras são nítidas:
“(...) cada um guarda a propriedade
de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito exceto ela.
Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são
propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o
colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe
pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado
comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo
que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma
propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o
direito ao que o trabalho lhe acrescentou.”[2]
Não apenas essa afirmação de
Locke estaria em pleno acordo com a função social da propriedade, mas também
com um dos lemas já usados pelo MST: “terra para quem nela trabalha”.
Se avançarmos um pouco mais na história,
chegando aos herdeiros intelectuais dos liberais, os libertários, veremos que
mesmo autores mais radicais como Murray Rothbard concordam com a visão de que
só é possível garantir o direito de propriedade enquanto ocupa-se e dá-se uma finalidade
a ela:
“O homem vem ao mundo com apenas ele
próprio e o mundo ao seu redor — a terra e os recursos naturais que lhe são
dados pela natureza. Ele pega estes recursos e os transforma, através de seu
trabalho, sua mente e sua energia, em bens que são mais úteis para o homem. Se
um indivíduo, portanto, não pode possuir a terra original, ele tampouco poderá,
no sentido pleno, possuir qualquer um dos frutos de seu trabalho. O fazendeiro
não poderá ter a propriedade do trigo que colher se ele não puder ter a posse
da terra na qual aquele trigo cresceu. Agora que seu trabalho foi misturado de
maneira inextricável com a terra, ele não pode ser privado de um sem ser
privado do outro. Além do mais, se um produtor não tiver direito aos frutos de
seu trabalho, quem deverá ter?”[3]
Vemos desta forma, ainda que de maneira bem
resumida, que mesmo a doutrina liberal pode estar em conformidade com a ideia
de os direitos de propriedade serem garantidos apenas a quem comprovadamente
pode manter posse dos mesmos, sendo a defesa de um direito de propriedade
absoluto e irrestrito um ataque não apenas aos direitos humanos, mas à própria
tradição liberal/libertária.
Felipe Bucioli - Turma XXXV - Noturno
[1]
Vide p. 321 na secção “Estratégias jurídicas: o papel dos advogados populares”.
[2] LOCKE,
John. Segundo Tratado Sobre o Governo
Civil e Outros Escritos; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa
(Petrópolis, RJ: Vozes, 1994), p. 98.
[3] ROTHBARD,
Murray N. Por uma nova liberdade: o
manifesto libertário. Tradução de Rafael Sales de Azevedo. São Paulo: Instituto
Ludwig von Mises Brasil, 2013, p. 50.
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