Boaventura de Sousa Santos no capítulo
de sua obra intitulado “Para uma Teoria Sociojurídica da Indignação” trará uma
reflexão acerca das possibilidades de ocupar o Direito e, assim, transformá-lo
em um mecanismo emancipatório e não mais uma forma exclusiva de dominação. E,
nessa mesma perspectiva, o Acordão do caso Fazenda Primavera revela uma
emancipação ao fazer valer a função social da propriedade, que é um dos princípios
fundamentais de nossa Constituição uma vez que está relacionado com a dignidade
da pessoa humana.Desta forma, deixa de seguir uma jurisprudência conservadora que
prioriza o direito individual em detrimento do coletivo, desrespeitando,
diversas vezes, o inciso XXIII
do artigo 5º de nossa Carta Magna.
Desta forma, podemos encarar tal decisão
como uma maneira de diminuir a dualidade abissal do Direito, representada não
apenas pelo pluralismo legal do Direito estatal e do Direto paralelo ou pela
divergência entre prática e teoria, mas, principalmente, pela amplitude entre os
Direitos dos 99% e do 1%, denominados
também, respectivamente, de Direito dos Opressores e dos Oprimidos. Esse abismo só pode ser diminuído com a inclusão
dessas minorias dentro do direito e com a possibilidade de outras
interpretações dentro do próprio campo jurídico, não a fim de rompê-lo, mas sim
com finalidade de proporcionar conquistas destes novos grupos. Assim, o
reconhecimento da legitimidade da ocupação das terras improdutivas pelo
MST no caso em questão pelo Magistrado
demonstra um passo para diminuir tamanha discrepância entre os dois Direitos,
passando de um Direito Configurativo para um Reconfigurativo, pois atua na
contra-hegemonia com a emancipação dentro da própria forma jurídica.
Nas palavras de
Boaventura, os Direitos Configurativo e Reconfigurativo são, respectivamente, “
um direito que reflete uma determinada configuração das relações de poder. Se
estas forem desiguais e destinadas a produzir injustiças e opressão, o direito
será igualmente injusto e opressivo” e “é um direito em processo de ser utilizado
de modo a alternar as relações de poder e reconfigurar a correlação de forças
da sociedade. O direito reconfigurativo é o que está subjacente àquilo que
tenho vindo a denominar o uso contra-hegemonico do Direito(...)”. Ou seja, a inviabilização
de retomada de posse pelos antigos proprietários das terras da Fazenda
Primavera pela negação do agravo de instrumento é uma forma de diminuir as injustiças
de nossa sociedade, na qual a desigualdade, não apenas de terra, é nítida e
opressora.
Esse acórdão pode,
ainda, representar o Direito Preconfigurativo, que segundo Boaventura “é um direito expressivo ou performativo, um direito que expressa, na prática, a
antecipação de uma sociedade diferente, baseada num conjunto de relações de
poder totalmente distinta”, uma vez que projeta bases para uma nova
jurisprudência (caso não seja encarado como um caso isolado) e, assim, lançar
bases para uma nova hermenêutica do Direito, voltada para o âmbito social.
Por fim, o
conceito de constitucionalismo transformador expõe que, para romper como status quo do Direito, é necessário um
direito constitucional reconfigurativo, ou seja, uma nova democracia para nossa
sociedade, que na grande maioria dos casos se abstem das lutas sociais. Seria,
pois, necessária maior participação popular para exercer uma pressão “de baixo para
cima” a fim de emancipar o Direito através do uso contra-hegemônico. Para
tanto, é necessário diminuir as desigualdades inerentes de nosso meio, já que o
desequilíbrio de poder gera inoperância de qualquer mudança, e,
consequentemente, superar as disparidades do mundo jurídico, levando a uma
Ecologia dos Saberes, que se conceitua como a convivência harmônica de
diferentes discursos ao romper com a legitimidade de um saber monolítico e
buscar outras concepções acerca de legalidade, para além de um Direito
exclusivamente formal.
Portanto, a
decisão do julgado Fazenda Primavera vai de encontro com a ocupação do Direito
proposta por Boaventura, uma vez que reconfigurou o direito até então existente
para diminuir o abismo entre os Direitos dos Opressores e dos Oprimidos, sendo
estes últimos representados, neste caso, pelo MST, um movimento que podem ser
equiparado às “revoltas da indignação”, já que ambas reinvindicações são pelo fim das injustiças e desigualdades e
contra a privação de um grupo de sua dignidade humana básica, que pode ser
representada pelo direito de uma propriedade com existência de sua função
social. Desta maneira, faz-se uma interlocução
com o direito hegemônico para interpelar o direito legal com novas
interpretações, segundo as novas narrativas, sem romper com o que fato o
Direito é, mas proporcionando conquista aos oprimidos, e assim, aceitar novas
visões para o ordenamento jurídico, formando uma Ecologia de Saberes em
detrimento de uma visão exclusiva dos dominadores.
Alice Maria Silva Pires, Direito Noturno
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