Na
geografia são utilizados alguns critérios para regionalizar o globo terrestre,
sendo possível comparar, analisar e observar determinadas características, indo
desde o aspecto físico, socioeconômico, religioso, político e geográfico. Uma
das divisões mais conhecida ocorreu no contexto de Guerra Fria, no qual os
países eram divididos entre primeiro, segundo e terceiro mundo, que eram,
respectivamente, países capitalistas desenvolvidos, países socialistas e países
capitalistas subdesenvolvidos. Entretanto, na atualidade existem novos tipos de
divisão, nem sempre levando em consideração apenas aspectos considerados na
geografia. Nesse caso, Sara Araújo em “O primado do direito e as exclusões
abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone” aborda conceitos de
norte e sul que possuem perspectivas de gênero, étnico-raciais, de sexualidade
e epistemológicas, mostrando o grande penhasco da desigualdade na atualidade.
Nesse
sentido, Norte seria o que a autora chama de “deste lado da linha”, os
representantes da hegemonia, da legitimidade, já o Sul seria o “do outro lado
da linha”, os marginalizados, menosprezados, que foram colonizados e possuem
sobre si grande influência cultural, social e jurídica dos nortistas, com seus
conhecimentos e seus direitos sendo invisibilizados ou considerados “atrasados”,
além do uso do direito moderno e eurocêntrico para reproduzir o colonialismo, e
consequentemente, as exclusões sociais abissais.
Em
consonância a isso, o caso da chacina de Nova Brasília, como ficou mais
conhecido, pode ser exemplificado. Em 1994, 13 moradores da favela que faz
parte do Complexo do Alemão foram brutalmente assassinados. No ano seguinte,
mais 13 jovens foram mortos durante uma operação na favela, que mais tarde foi
isenta da responsabilidade porque os homicídios foram registrados como confrontos
e atos de resistência. Esse caso ficou mais de 25 anos sem julgamento, e só foi
reaberto após o Brasil receber sua primeira condenação pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, por violência policial. Nessa condenação, o
Brasil precisava pagar indenizações por danos materiais e morais aos
familiares, inclusive de vítimas que sofreram violência sexual, além de
reativar as investigações. Em 2018 houve o julgamento, no qual os 5 réus que
foram indiciados foram absolvidos, pois reconheceram os fatos, mas não a
autoria dos crimes.
Nessa
perspectiva, pode- se dizer que todos esses anos sem um fim adequado para esse
caso perpetuou as epistemologias fundamentadas no norte, porque levaram em
conta apenas a palavra de homens brancos privilegiados, além do sistema de
justiça ser focado nessa ótica capitalista, desigual, preconceituosa, que
causou grandes incongruências durante as investigações, arquivou o caso e
desprezou dezenas de famílias, que por estarem do lado “sul”, assim como as
vítimas, foram oprimidas e invisibilizadas pela lógica do homem branco que
detém o poder. Assim, é possível perceber esse padrão em duas ocasiões dentro
desse escopo: primeiramente a relação entre regiões desenvolvidas da cidade,
favelas e polícia, pois a hegemonia do homem branco privilegiado leva a um
afastamento cada vez maior dos grupos vulneráveis, nesse caso da população
negra, com preconceitos raciais, religiosos e epistemológicos, e a atitude da
força policial em cada região é diferente, como um reflexo dessa desigualdade;
após isso, dentro do tribunais também há essa percepção de colonialismo, que
mostra mais uma vez o poder das forças hegemônicas e mantém um ciclo de
opressões e discriminações.
Em suma, é necessário levar em consideração as pluralidades brasileiras e tentar um afastamento desse imperialismo no direito e na sociedade, preenchendo-o com epistemologias de pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+, feministas, e todos os outros grupos que possam sofrer com essa lógica monocultora do capitalismo, do patriarcado e do colonialismo. Espera-se, também, que exista maior eficiência em casos como o citado, e que haja uma dissociação entre o poder policial com os casos de julgamento, além de não presumirem que toda morte em favela foi merecida porque a pessoa era uma criminosa ou que resistiu à operação, pois viabilizaria outros massacres, como o do Jacarezinho que ocorreu anos depois porque mais uma vez a luta negra está do “lado de fora”.
https://www.conjur.com.br/2021-ago-25/stj-nega-federalizar-investigacao-chacinas-brasilia
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