A partir do século XIX, a ciência médica passou a se aproximar
do tema da homossexualidade desenvolvendo inúmeras teses, ainda muito
influenciadas pelo preconceito, acerca da natureza dessas relações. Todavia, a
literatura demonstra que os indivíduos possuem e expressam orientações sexuais
distintas muito antes da medicina preocupar-se em estudá-las. Na Antiguidade
Clássica, pautas como o homoerotismo resultam em uma análise muito mais
emblemática, pois, naquela época, expressões de sexualidade que são vistas hoje
como desvios da “ordem natural”, eram aceitas e tidas como forma particular de
exaltar beleza e juventude. Contudo, com a Idade Média, o estabelecimento do
pecado cristão conferiu ao homoerotismo um caráter demoníaco, de subversão e,
portanto, proibido. A partir daí discussões que tivessem identidade de gênero,
sexualidade e orientação sexual como pautas centrais foram cada vez mais
sufocadas e silenciadas pelo o que Sara Araújo, dialogando com as ideias de Boaventura de Sousa Santos, irá chamar de “epistemologias do
Norte”.
Segundo a autora, com base na tese do professor português, o Norte representa perspectivas,
conceitos, normas e princípios que são hegemônicos, enquanto o Sul é composto
por todas as outras ideias consideradas atrasadas e invisíveis, caracterizando
uma divisão que ultrapassa limites geográficos. Tudo o que é movimentado pelo
lado “assimétrico” recai no esquecimento da universalidade, uma vez que uma
monocultura do saber transforma o pensamento científico e a cultura do Norte em
preceitos únicos e superiores, enquanto uma monocultura do global generaliza
tudo o que é singular. A desvalorização daquilo que é produzido pelo
não-hegemônico resulta no imaginário popular a ideia de improdutividade, o que,
por conseguinte, reverbera a noção de que esse grupo subalternizado é de fato
selvagem, atrasado e primitivo e deve, por isso, ser engolido pelo padrão
civilizacional da modernidade.
Tal condição pode ser observada na decisão tomada pelo TJRJ
de suspender a liminar concedida pelo Desembargador Heleno Ribeiro Pereira
Nunes, da 5ª Câmara Cível. No caso que envolvia a apreensão de obras de
homoerotismo na Bienal do Livro da cidade do Rio de Janeiro, o desembargador
concedeu a liminar para determinar “ (i) a abstenção de apreensão das obras “em
função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo” e
(ii) a abstenção da cassação da licença para a bienal, embasando-se na preservação
da liberdade de expressão”. No entanto, o Tribunal de Justiça do estado, em uma
evidente lógica evolucionista de atropelar as diferenças, suspendeu a referida
liminar, embasando-se, essencialmente, no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A postura adotada pelo tribunal ilustra a urgência não em preservar as pautas
descritas nos artigos do ECA, mas sim em manter as formas hegemônicas de
pensamento, haja vista que uma produção literária que aborda o mesmo conteúdo,
mas aos moldes da heteronormatividade não resulta em tamanha censura e
reprovação.
Entretanto, o julgado conta ainda com a suspensão dessa
liminar apresentada pela Procuradoria-Geral da República em face de decisão do
Presidente do TJRJ, dialogando mais uma vez com as ideias de Sara Araújo. A PGR
defende “a necessidade de suspensão da referida decisão, uma vez que estaria
por ferir “frontalmente a igualdade, a liberdade de expressão artística e o
direito à informação”, afirmando que “o ato da Prefeitura do Município do Rio
de Janeiro discrimina frontalmente pessoas por sua orientação sexual e
identidade de gênero, ao determinar o uso de embalagem lacrada somente para “obras
que tratem do tema do homotransexualismo” exemplificando como a tentativa de
manutenção da colonialidade da ciência e da razão pode ser superada quando a
ecologia de direitos é posta em prática, valorizando a liberdade de pensamento
e expressão, celebrando a pluralidade de ideias e substituindo o universalismo
abstrato do direito moderno.
Giovanna
Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino
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