Sara Araújo, em seu texto “O Primado do Direito e as Exclusões Abissais”, evoca uma linha de pensamento que se constitui como uma epistemologia do Sul, uma diferenciação de pensamentos não hegemônicos, aquilo que não é convencional do ponto de vista étnico-racial, de gênero ou sexualidade, em relação àqueles que dominam a normatividade de pensamento do Direito. Nesse contexto, surge a ideia de uma linha abissal, uma zona limítrofe para tudo aquilo que não é alvo do pensamento da modernidade, do que se convencionou chamar razão ou racionalidade. Como ela mesma cita em sua obra: “A modernidade eurocêntrica é um projeto tanto epistemológico quanto jurídico. Se a ciência moderna estabelece os parâmetros da sociedade civilizada, o primado do direito assegura a sua tradução em limites que os sujeitos são submetidos e em mapas que circunscrevem o horizonte de possibilidades”.
Dentro deste cenário, surge a
figura da invisibilidade, dos direitos não positivados e a realidade de
exclusão ante um vasto espectro de normalidades não-hegemônicas ignoradas pela
sociedade. Os conceitos de “universalidade” e “global”, no universo da
modernidade e da ciência, colocam o Norte em uma zona de superioridade que
desconsidera e deslegitima a diversidade de pensamentos e conceitos, uma
verdadeira zona de silêncio constituída por esse domínio nortista. Esse embate
é nitidamente perceptível nas oposições da sociedade, na qual as ideias e
concepções não contempladas pela “normalidade” são interpretadas por um viés de
desprezo e repulsa, como por exemplo na segmentação/segregação musical, onde
determinados estilos são categorizados como de minorias (funk, hip hop, entre
outros) e ignorados ou desconhecidos pelo outro polo dito padrão ou hegemônico.
No campo do Direito esses
silêncios, reflexos da linha abissal que separa essas realidades distintas, se
dão principalmente por meio de legislações que não contemplam as “minorias”
sulistas. O que Sara entende como a prevalência da razão metonímica evidencia a
tomada da parte pelo todo, categorizando e pré-conceituando grupos segregados,
muitas vezes tolhidos de suas essencialidades. Contextualizando, podemos citar
o caso de 2019, da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, onde uma notificação
extrajudicial da Prefeitura solicitou que o livro denominado “Vingadores” fosse
lacrado e tivesse uma classificação indicativa ou aviso de que havia conteúdo
impróprio para menores, sob a justificativa de que na história em quadrinhos
havia um beijo entre dois personagens masculinos. Essa categorização de
impropriedade, que coloca a homossexualidade e a expressão de gênero diversa do
padrão heterocisnormativo como algo a ser invisível aos olhos da sociedade
explicita essa separação.
O ministro do STF, Dias Toffoli,
em seu parecer da medida cautelar na suspensão de liminar 1248, demonstra uma forte inclinação a romper com essa linha. Ao
afirmar que não há o que se falar sobre “homotransexualismo” como violação aos
valores éticos e sociais da pessoa e da família, e ainda reforçando o
reconhecimento do direito à união civil para casais formados por pessoas do
mesmo sexo dado em 2011, ele deixa claro que o regime democrático pressupõe um
ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos têm direito a voz. Ainda,
sustenta o fato de que diferentes convicções e visões de mundo devem ser
expostas, defendidas e confrontadas, dentro de um debate plural e agregador. Ao
desafiar essa dicotomia norte-sul, a decisão da Corte destaca uma superação
dessa realidade limitante e coloca o Direito acima do cânone hegemônico que se
convencionou existir nos tempos modernos.
(Laredo Silva e Oliveira - 1º Ano - Direito Noturno)
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