Refletir acerca das novas
institucionalidades que possam integrar o Direito é pensar no Direito que não é
prerrogativa apenas dos bacharéis, é pensar no Direito como recurso disponível
para o acesso e mobilização social de forma ampla. Boaventura de Sousa Santos
aborda essa temática com ferrenha maestria. A saber, de acordo com o autor,
devemos fazer das estruturas jurídicas um instrumento de luta política e de ativismo
social, visando abrir caminhos para uma perspectiva emancipatória. Ademais, ele
afirma que quaisquer mudanças no âmbito do Direito precisa, necessariamente,
passar pela expansão do acesso à justiça e por uma transformação no ensino
juridico, tendo em vista que a tradição nos quer transmitir uma visão
hegemônica e convencional do Direito.
Em um dos parágrafos de sua análise,
Boaventura menciona que (2011, p. 46):
“[...] É preciso que os
cidadãos se capacitem juridicamente, porque o direito, apesar de ser um bem que
está na sabedoria do povo, é manejado e apresentado pelas profissões jurídicas
através do controle de uma linguagem técnica ininteligível para o cidadão
comum. Com a capacitação jurídica, o direito converte-se de um instrumento hegemônico
de alienação das partes e despolitização dos conflitos a uma ferramenta contra
hegemônica apropriada de baixo para cima como estratégia de luta”.
Ao contemplar esse
diagnóstico realizado pelo autor, podemos perceber que as estruturas dominantes
têm se utilizado do Direito como uma estratégia para manter os indivíduos distantes
do entendimento de seus direitos e garantias. A linguagem é fator determinante
na interpretação social e jurídica, sendo que não é possível prever um amplo
conhecimento jurídico utilizando de uma linguagem extremamente metodológica e
excludente. Assim, o Direito que deveria ser para todos, tem sido para alguns. O
Direito, assim como alude Boaventura tem sido “instrumento hegemônico de
alienação das partes”.
Ao realizar uma análise
histórica, podemos perceber que os indivíduos se viram, a partir do surgimento
do Estado de bem-estar social europeu sobretudo, como sujeitos de direito.
Dessa forma, movimentos e diversos grupos sociais passaram a buscar a
efetivação dessas garantias fundamentais e a exigir a materialização de seus
direitos. Além disso, eles também questionavam a grande abstração das leis,
tendo em vista que diversas normativas atestavam sobre garantias fundamentais,
mas não as fixavam concretamente.
Como barrar esse grande
movimento de reivindicação social? Uma das estratégias utilizadas é, assim como
menciona Boaventura, através do controle de uma linguagem técnica ininteligível
para o cidadão comum. Sabemos, assim como estabelece o autor, que nos tempos
atuais, o conhecimento do Direito se encontra mais engendrado no pensamento da
sociedade. No entanto, grande parte dos indivíduos componentes desse ambiente
social se encontram excluídos do entendimento jurídico, uma vez que não possuem
domínio dessa linguagem técnica e complexa que é utilizada pelo campo jurídico.
Um dos maiores filósofos da
história, Immanuel Kant, afirmava que o sujeito é resultado daquilo que a
educação faz dele, podendo assim, vencer muitas barreiras por meio de sua
sabedoria. Os dominadores possuem entendimento acerca desse fator. Eles sabem
que uma comunidade conhecedora de seus direitos fundamentais é prejudicial para
as estruturas hegemônicas convencionais, por isso lutam pela manutenção de
estruturas jurídicas excludentes, por isso lutam pela não concretização da
capacitação jurídica para todos.
A saber, Pierre Bourdieu
reportou em seus escritos acerca dessa conformação excludente do campo do
Direito. Segundo o autor, existe uma necessidade dos representantes do campo
jurídico de se diferenciarem dos demais sujeitos sociais. Para Bourdieu, isso
vem da tradição de uma epistemologia na qual considera que o sujeito só
exercerá domínio se ele se colocar como um elemento de distinção, portando um
conhecimento inacessível à grande massa. Isto é, sem dúvidas, ver o Direito
como prerrogativa dos bacharéis e não como um recurso social à disposição de
todos, e ir contra o pensamento de emancipação pregado por Boaventura.
Lastimavelmente, esse
Direito que exclui grande parcela da população por utilizar de uma linguagem
inacessível está muito presente na contemporaneidade, inclusiva no cotidiano
brasileiro. Exemplo disso, é uma petição que trata de um pedido de liminar em
mandado de segurança impetrado por X, contra ato do Sr. Prefeito de Franca, Y,
que, por meio do Decreto Municipal proibiu, dentre outras, a atividade de
“lotéricas e correspondentes bancários”. Com a leitura do referido julgado,
pode-se perceber a utilização de termos extremamente dificultosos ao
entendimento de muitos na sociedade.
Vocábulos muito densos foram
(e são constantemente) utilizados no referido julgado (e em vários outros).
Expressões como “impetrantes”, “impetração”, “autoridade coatora”, “esbulho”,
“dilação probatória”, “liminar pleiteada” são exemplos retirados da petição em
análise que torna possível a conclusão de que Boaventura estava completamente
correto em suas prerrogativas. Quando um julgado como estes, que se destina a
toda população, inclusive às mais carentes e desprovidas de conhecimentos
técnicos a respeito desses termos, utiliza de palavras que muitas vezes podem
ser completamente desconhecidas por vários, podemos constatar como o Direito
pode ser usado como ferramenta de dominação.
No entanto, Boaventura
afirma que devemos fazer um esforço de ocupar o Direito. Devemos fazer um
esforço para preencher o Direito com essas epistemologias dos oprimidos e das
minorias, que são silenciadas dentro das doutrinas e legislações. O autor irá defender muito a capacitação
jurídica como forma de ampliação das estruturas jurídicas para além da estrutura
estatal hegemônica. Ademais, podemos perceber como ele traz diversas
alternativas jurídicas frente ao poder convencional.
Dessa maneira, Santos irá
apontar sobre o papel estratégico desempenhado pela Defensoria Pública
(instituições que, segundo o autor, são essenciais na defesa da população mais
carenciada). O escritor também cita as promotoras legais populares
(instituições que viabilizam uma expansão da comunidade de intérpretes do campo
jurídico. Sendo que essa expansão significa o aumento de indivíduos que possuem
conhecimento jurídico como ferramenta de atuação e luta). Ademais, ele
estabelece que a capacitação jurídica
de lideranças comunitárias são importantes estratégias de ampliação de
estruturas alternativas às instituições jurídicas convencionais. Boaventura
também menciona sobre as assessorias jurídicas universitárias populares e as
advocacias populares.
Enfim, Santos traz para debate sobre a importância da transformação epistemológicas do Direito e da relevância da ecologia de saberes jurídicos e não apenas de uma dogmática jurídica do direito estatal, visto que este é responsável por produzir exclusões, domínios e desigualdades (o direito estatal é quase sempre expressão da vontade e do poder da classe dominante). As estruturas jurídicas devem ser amplas e diversificadas, para permitir que os seres humanos possam ser de fato “humanos”. As pessoas deveriam desconhecer a fome por meio do Direito, uma vez que leis poderiam ser aplicadas e não apenas positivadas para atender essa necessidade básica de qualquer ser humano. As pessoas deveriam conhecer a educação, pois o Direito teria de ser um elemento propulsor e assegurador da educação pública para todos. Mencionando assim, parece-me extremamente utópico, porém, abster-se nunca será a solução para um problema, devemos questionar e buscar formas, lutando, para que o Direito seja de fato um certificado de que de fato somos iguais e que de fato possuímos as mesmas garantias efetivadas.
LIVIA GOMES - TURMA 38 - NOTURNO
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