Tendo em vista que tradicionalmente o campo jurídico se fundamenta na “continuidade para fazer melhor o que sempre tinha feito” (p.54), o sociólogo Boaventura de Sousa Santos discorre sobre a necessidade da mudança no ensino jurídico e a expansão do acesso à justiça para que o direito possa atender de maneira efetiva às novas demandas sociais. Para isso, o direito deve passar de mero instrumento alienante e despolitizado para ser um mecanismo da luta contra hegemônica, rejeitando a perspectiva de sua transformação como algo intransponível, dado que esse pensamento limita as possibilidades da luta democrática.
Entretanto, a juridificação da vida social e consequente sobrecarga dos tribunais pôs em cheque a satisfação quanto à qualidade da justiça oferecida. A morosidade processual acarreta a menor confiança “nos tribunais como meio de resolução de seus conflitos” (p.26) e engendra a razão indolente. Nessa lógica, as alterações da administração pública deve ultrapassar a dinâmica empresarial que se submete a critérios de “eficiência, eficácia, criatividade, competitividade e serviços próprios” (p.29) para o que Boaventura convencionou de Estado como novíssimo movimento social, o qual é “articulador e integrante de um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações” (p.30). Com essa reformulação democrática da justiça, as instituições estatais estão relacionadas com os movimentos sociais e possibilita a ampliação do espaço dos possíveis.
Dessa forma, a medida cautelar da ADPF 467/MG ajuizada pela Procuradoria-Geral da República exemplifica a mudança substancial no âmbito jurídico discutido por Santos. Nessa ação, a parte requerente alega que os arts. 2º caput, e 3º caput, da lei 3.491/2015 do município de Ipatinga contrariam preceitos fundamentais da Constituição Federal. Os artigos mencionados excluem da política municipal de ensino a referência à diversidade de gênero e orientação sexual, indo de encontro com o “princípio da liberdade de ensino, do pluralismo de ideais e concepções pedagógicas e do fomento à liberdade e à tolerância” observada pelo próprio texto constitucional.
Posto isto, o papel da Procuradoria-Geral demonstra, de um lado, a transformação epistemológica dos operadores do direito cristalizada na defesa de pautas concernentes aos saberes não hegemônicos, visto que a PGR busca atender as reivindicações dos movimentos sociais traduzido nessa sentença como a possibilidade de ter o ensino sobre orientação sexual e identidade de gênero. De outro, amplia o acesso à justiça, dado que abre precedentes para futuras causas que tangenciam o assunto e, diferentemente da desconfiança causada pela morosidade, estende caminhos para outras lutas sociais utilizarem do judiciário como instrumento politizado para a concretização de seus direitos. Assim, sob a ótica do direito à igualdade, a decisão do Ministro Gilmar Mendes ao acatar o pedido cautelar para a suspensão dos artigos ampliou a possibilidade do campo jurídico de se adaptar ao novo tipo de sociedade e se desvencilhar do ideal de um sistema criado para seguir o pensamento majoritário.
Referência:
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3a. Edição. São Paulo: Cortez, 2011. [Cap. 2: “O acesso à justiça”, p. 31-47; Cap. 3: “O ensino do direito e a formação profissional”, p. 54-66”]
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