Sara Araújo, importante socióloga contra hegemônica, fundamenta sua teoria na existência de uma linha abissal que segmenta o mundo em norte e sul, porém, não no sentido físico, mas sim no aspecto epistemológico. Sob essa análise, enquanto o norte representa o padrão hegemônico em todos os âmbitos, o sul abrange as teorias do conhecimento voltadas às questões de sexualidade, de gênero e étnico-raciais, ou seja, tudo aquilo que foge do padrão capitalista. Nesse sentido, devido à contestação do sistema vigente, é possível perceber a produção da inexistência como base do pensamento abissal, ou seja, o norte, de forma proposital, torna invisível tudo aquilo relacionado ao sul — além de, muitas vezes, criar uma lógica de não simultaneidade, isto é, classifica tudo que vem do sul como atrasado.
Sob essa perspectiva, traça-se uma forte crítica à razão metonímica, visto que esta, por meio das monoculturas, encarrega-se de fornecer base à epistemologia dominante. Dentre as cinco monoculturas mais importantes, tem-se aquela do saber, da produtividade, da naturalização das diferenças, do tempo linear e a global. Sendo assim, por fornecer ferramentas que auxiliem a não legitimação de outros lugares de fala — que não provenientes do norte —, observa-se um desperdício da experiência social, já que todas as experiências provindas do sul são apagadas ou interpretadas por uma lógica evolucionista, onde o pico do padrão civilizacional encontra-se no norte.
Ademais, é possível notar que, como apontado pela autora, “a modernidade eurocêntrica é um projeto tanto epistemológico quanto jurídico” (ARAÚJO, 2016). Ou seja, o Direito espelha-se nessas cinco monoculturas e, tomando por roupagem o discurso de justiça, igualdade e racionalidade, assume a função de estabelecer uma suposta ordem natural, que, na verdade, apenas legitima o poder dominante e o sistema capitalista.
Partindo dessa análise, são perceptíveis as teorias de Sara Araújo no agravo de instrumento número 70003434388, o qual aponta que os proprietários, Plínio Formiguieri e Valéria Dreyer Formighieri, “[…] em 15 de outubro do corrente ano [2001], tiveram sua propriedade invadida por pessoas integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra”. Nesse trecho percebe-se o domínio da epistemologia do norte, visto que o documento utiliza-se da palavra “invadida” — que denota um sentido mais ofensivo, isto é, significa entrar em um espaço à força e ocupá-lo — e não “ocupada”, que se adequa melhor à situação, considerando que o movimento passou a utilizar uma terra que estava ociosa, ou seja, que não estava cumprindo a função social determinada por lei. Nesse sentido, o movimento MST iria contra a própria razão metonímica, visto que é, notoriamente, uma expressão da demanda provinda da epistemologia do sul, que enfrenta, de forma mais direta, a monocultura da produtividade (impõe que tudo aquilo que não é expressão da acumulação capitalista assume a forma de improdutivo) e a monocultura da naturalização das diferenças (naturaliza as desigualdades).
Entretanto, apesar da tentativa, ainda que fraca e falha, de provar o uso e a produtividade da terra, o judiciário negou provimento ao Agravo. Sob essa análise, é possível perceber que, apesar de o Direito moderno ser um braço capitalista de manutenção da hegemonia do norte, aos poucos, ele toma o papel ideal — proposto pela autora — de vigilância epistemológica para que as expressões diversas tenham respeito e legitimidade. Ou seja, apesar de a agricultura familiar ir contra os princípios capitalistas de lucro e produção em escala, isto é, ser uma demanda do sul, o Direito, ao invés de manter-se como um mecanismo de manutenção do sistema, tomou sua forma ecológica e efetivamente justa para o “reconhecimento da pluralidade e a transformação das diferenças verticais em diferenças horizontais” (ARAÚJO, 2016).
Em suma, nota-se, por meio das teorias de Sara Araújo, uma tentativa do sul epistemológico de não ser apagado pelo norte, que o faz através da razão metonímica. Essa razão, baseada nas monoculturas, torna ilegítima, atrasada ou inexistente qualquer lugar de fala não hegemônico e, por muitas vezes, utiliza-se do Direito para isso. Todavia, como demonstrado pela decisão referente ao agravo de instrumento supracitado — no qual o judiciário tomou o lado da narrativa provinda do sul, ou seja, do MST —, o Direito, gradualmente, assume a forma ecológica e de entendimento dos diversos lugares de fala. Nesse sentido, tem-se a esperança do fim dessa linha abissal que oprime uns e enaltece outros, de modo a permitir pontes de conhecimento entre esses mundos.
Larissa de Sá Hisnauer - segundo semestre - diurno
Bibliografia:
ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Sociologias. Porto Alegre, ano 18, n.o 43, set/dez 2016.
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