Total de visualizações de página (desde out/2009)

domingo, 5 de dezembro de 2021

 

Sara Araújo e a proibição da educação de gênero em Ipatinga

    Sara Araújo discute, na obra "O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone" a linha cultural abissal, muito mais profunda que o paralelo do Equador, divisora dos hemisférios norte e sul. um fruto prático e concreto dessa divisão está à mostra na Requisição da Procuradoria Geral da República para que sejam impugnados artigos da Lei 3.491/2015, aprovada no município de Ipatinga, cujos artigos 2° e 3° excluem da educação municipal conteúdos ligados à diversidade de gênero. É fato que a cidade em questão está no hemisfério sul. mas, nem por isso, o regramento oficial que a rege enquadra-se nas epistemologias apontadas por ela.

    Nessa lógica, é preciso, primeiro, explicar o porque de o afirmado acima acontecer, e, para isso, é preciso recorrer à carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao rei de Portugal na ocasião de uma expedição do escrevente pelas terras brasileiras. O comunicador sugeria que a realeza precisaria, muito mais que explorar o ouro e a prata, salvar a gente aqui encontrada, que mal cobria as próprias "vergonhas".  Nisso fica explícito um olhar católico e etnocêntrico sobre partes do corpo que indígenas sequer tratavam como separadas das demais, e fica antevisto o horror de Caminha e dos que o sucederiam em relação às práticas homoafetivas e libertárias de que participavam as genitálias nativas. Fica esclarecido, então, que as diretrizes do Executivo municipal de Ipatinga nada mais são que a atualização do raciocínio de um português, e. por isso, são próprias das epistemologias ocidentais do hemisfério Norte que Araújo aponta como hegemônicas. 

    Sara comenta também que a linguagem jurídica exclui do debate nesse âmbito muitos grupos minoritários. Isso relaciona-se com a situação de Ipatinga na medida em que não haveria, na cidade, um grupo LGBT+ com articulação suficiente para impedir a oficialização  dos artigos em voga, de modo que foi necessária a intervenção da PGR. Essa ausência explica-se pelo fato de que, conforme o divulgado em 2021 pela revista Carta Capital, 6 em cada 10 brasileiros membros dessa comunidade empobreceram na pandemia, o que mostra a ausência de solidez financeira dessa pessoas e permite inferir que não há, entre eles, corpo intelectual suficiente para atravessar o vocabulário jurídico, frequentar a faculdade de Direito e/ou conseguir aprovação em concursos públicos nessa área. Essa série de fatores listados explica a permanência do conservadorismo excludente na prefeitura desse e de tantos outros municípios. 

    Um outro ponto digno de nota é o fato de que o texto jurídico que, até aqui, contracenou com o de Araújo é uma ADPF, ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que tramita mais rápido em razão da importância do preceito descumprido. Acerca desse atalho, Sara cita um texto que ela própria produziu em 2015, e afirma que "A ecologia de direitos e de justiças deve incluir as lutas jurídicas que florescem na interlegalidade dos encontros jurídicos e nas lacunas do Estado, as justiças comunitárias que emergem em zonas de contacto entre vários direitos e as estratégias que os cidadãos e as cidadãs usam face à diversidade de ordens jurídica que têm ao dispor numa paisagem jurídica híbrida". Abrigar tudo isso é impossível se o sistema em si for burocrático demais ou se a transição entre as etapas processuais for lenta, de modo que, msmo indiretamente, o dito de Araújo defende o formato das ADPFs. 

Logo, fica clara a relação entre o exposto em "O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone" e o ocorrido em Ipatinga. Quanto ao resultado do processo, foi deferida a suspensão dos tais artigos contrários aos direitos de gays, lésbicas, travestis e muitos outros. Isso representa a materialização do pluralismo jurídico sobre o qual versa Araújo, embora não se possa afirmar, conforme ela mesma aponta, que decisões pontuais como essa são prova de que a linha abissal que divide os hemisférios está superada. Apesar de insuperada, porém, é preciso reconhecer que ela está um pouco menos vincada no globo se comparada ao que se apresentava na época de Caminha. 


Maria Paula Aleixo Golrks - 2° semestre - Direito matutino 


Nenhum comentário:

Postar um comentário