Analiso
o caso ocorrido em 2019 em que o Ministério Público de São Paulo ajuizou uma Ação
Civil Pública Cível contra Matheus Gabriel Braia por danos morais coletivos e
danos sociais. Matheus havia promovido, num trote, entonações de cunho
machista, pornográfico e misógino contra mulheres ali presentes.
A
Juíza responsável decidiu por julgar improcedente a ação. Ela alega que, após
uma longa argumentação, “não se pode presumir que o comportamento do requerido,
dirigido a um grupo específico de pessoas, seja uma agressão dirigida a todos
os indivíduos do sexo feminino”, e, portanto, não sendo o caso o crime de danos
morais coletivos e/ou sociais.
A
partir da perspectiva expressa no episódio, remeto à ideia de Sarah Araújo
sobre o pensamento moderno, que estabeleceria uma divisão tácita entre o “nós”
e o “eles”: uma “linha abissal” que separa este lado do de lá. Nesse contraste,
vemos um lado representando a ótica hegemônica, ou seja, dominante; enquanto a
outra, uma minoria desconsiderada e silenciada.
Explica
a autora que referida estrutura da realidade social é alimentada por
monoculturas, que seriam formas de legitimação e blindagem das relações de
opressão. Dentre as monoculturas, há o tipo da “monocultura da produtividade”,
a qual consiste na desconsideração de um pensamento “d’outro lado” por ser
considerado “improdutivo”.
Isso
me faz refletir sobre como que ao longo de tantos anos, num tribunal, o “ele
disse” pesava mais do que o “ela disse”. Pelo fato de a voz vir de uma mulher,
não se dava relevância ao valor da fala por se tratar de uma reivindicação
pertinente “do outro lado da linha abissal”, favorecendo a conservação de
valores dominantes. Seria, por acaso, o caso analisado um exemplo moderno
daquele costume?
Quão
quanto observamos as relações de dominância, mais conhecemos a força dos
interesses dominantes no direito, reagindo às reivindicações e conquistas do
lado desprivilegiado. Julgam uma afronta à “ordem natural”, mantendo o direito
ainda espelhado nas monoculturas que reproduzem a linha abissal – que apenas
promove desigualdade.
Dessa
forma, como uma ação contra-majoritária, é necessário que incentivemos uma luta
tendendo no sentido de fazer com que o caráter universalizante, único, do
direito seja substituído em favor do reconhecimento da pluralidade de direitos
e justiças “sociedade a fora”, a fim de que os mesmos passem a ter uma posição
muito mais marginal do que central na sociedade, produzindo toda uma
pluralidade de direitos que há no mundo.
O
caso mencionado serve como exemplo para argumentarmos em defesa dessa
importância de nos mobilizarmos a favor de uma produção às mulheres de uma
verdadeira ecologia de direitos e de justiça que vão, por sua vez, solapar as
monoculturas, desmantelando a linha abissal entre homens e as mulheres.
É
realmente triste lermos no julgado que “o requerido reproduziu ideias que
remetem à cultura do estupro, estimulando agressão e violência”, sem que
tenhamos como resposta à altura algo que faça justiça às mulheres ali
presentes.
Fernando
Carvalho
Noturno
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