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domingo, 5 de dezembro de 2021

A emersão da epistemologia do Sul

    Assim como, na história da humanidade, o papel da ciência moderna foi homogeneizar as culturas de acordo com os parâmetros eurocêntricos, o Direito, por ser um produto das relações sociais e um mecanismo de regulamentação delas, também encontra a prevalência dos saberes hegemônicos do Norte, isto é, noções culturais que se baseiam apenas na realidade de parte da sociedade — quantitativamente — minoritária. Em razão da influência dessa epistemologia nortista nas decisões judiciais, a socióloga Sara Araújo propõe em seu artigo a ultrapassagem para o ‘outro lado’, das expressões não-hegemônicas, as quais são postas no lugar de inexistência por aquela, já que vão de encontro com a universalidade de seu pensamento.

    Neste sentido, a ação que se deu após um ex-aluno da UNIFRAN proferir, em comemoração do ingresso dos novos estudantes, um hino com “expressões de conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico” (fls. 1175) demonstra a busca pela transposição da “linha abissal” no campo jurídico, esta desenvolvida pelo próprio Direito ao se associar “às ideias de racionalidade, neutralidade, objetividade e justiça” (p.93) que legitima o modelo dominante. Ao argumentar que “a conduta praticada (...) reforçou o machismo e colocou a mulher em posição de inferioridade” (fls. 1176)  e “reproduziu ideias que remetem à cultura do estupro” (fls. 1176), a parte requerente rejeita a imposição do patriarcalismo e do machismo que permeia a expressão nortista, buscando romper com a naturalização das diferenças a qual é alimentada pela generalização do conhecimento hegemônico.

 Apesar da tentativa de se conceber outras formas de perspectivas epistemológicas fora da essencialidade hegemônica, a decisão proferida pela juíza Adriana Gatto Martins Bonemer reforça a persistência da colonialidade do pensamento moderno. Para ela, não houve por parte do acusado a intenção de ofender a coletividade feminina, sendo a problemática maior a degradação moral que o movimento feminista engendra na atualidade, remetendo a superioridade do saber do Norte, o qual deve ser seguido. Com isso, ao julgar improcedente a ação, a juíza corrobora a inferiorização do ‘outro lado’ e desperdiça as outras experiências, pois elas se encontram distante da “‘ordem natural’ que certifica os valores e as metas da globalização capitalista neoliberal” (p. 93).

    Por fim, o direito moderno ao renunciar seu lugar de enunciação permitiu que no campo jurídico fosse replicado a lógica hegemônica, assim “a definição do cânone e a linguagem em que este se expressa, os saberes, as normas e as práticas diferentes ou que se exprimem de outro modo tendem a ser inferiorizados e invisibilizados” (p.95), tal qual a sentença dada para o caso da apologia ao estrupo que coloca a dignidade feminina e o respeito ao coletivo em uma posição de não-existência, consequentemente, de ilegalidade por ser uma manifestação contra hegemônica. Para tanto, Sara sugere que a superação dessa dinâmica será concretizada quando se rejeitar as monoculturas produzidas pela razão metonímica e reconhecer a epistemologia do Sul como forma de conceber o mundo, dessa forma, alargando o cânone jurídico e permitindo a copresença das diversidades de justiças e direitos.





Referência:

ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.o 43, set/dez set/dez 2016, p. 88-115.


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