Acerca do tema da justiça na contemporaneidade, Boaventura de Sousa Santos comenta que muito se desconfia desta e um dos fatores motivacionais disto é a morosidade, fenômeno marcado pelo atraso nas respostas dadas pelos tribunais aos problemas sociais. Essa demora, ora promovida pelo excesso de trabalho e de burocracia ora pelo manejo de obstáculos às conclusões dos processos por aqueles que participam dele, acaba por gerar uma desconfiança nas partes dos processos, as quais acabam desistindo ou deixando de entrar na justiça.
A fim de resolver tal problema, Boaventura propõe a reformulação da justiça por meio da ampliação dos sistemas capazes de promovê-la tanto para desafogar o sistema quanto para dar soluções mais assertivas. Para exemplificar isso, Boaventura traz a questão das promotoras legais populares, isto é, mulheres capacitadas “nas áreas do direito, da justiça e [...] no combate à discriminação de gênero” (SANTOS, 2011, p. 37) para solucionar conflitos de gênero principalmente. Isso, além de ampliar o acesso à justiça, possibilita uma decisão mais contextualizada e, portanto, melhor.
A principal característica
dessa iniciativa é a ênfase que dá à questão de gênero, partindo do pressuposto
de que o conhecimento da lei e dos mecanismos que orientam a atuação do
judiciário possibilitam às mulheres lutar contra uma situação de desvantagem
inicial diante de instâncias públicas e privadas, que tendem a oferecer
tratamento desigual aos homens e às mulheres. À medida que as mulheres tomam
conhecimento dos seus direitos e sabem a quem apelar, ficam menos suscetíveis à
violência e à discriminação. Nesse sentido, os conteúdos dos cursos procuram
sempre chamar a atenção para a perspectiva dos direitos das mulheres. O
objetivo principal é que as participantes, ao fim do curso, estejam preparadas
para atuarem como agentes multiplicadoras, orientando outras pessoas, em
especial, outras mulheres. (SANTOS, 2011, p. 38).
Como interpreta mal a
realidade, o magistrado é preso fácil de ideias dominantes. Aliás, segundo a
cultura dominante, o magistrado não deve ter sequer ideias próprias, deve é aplicar
a lei. Obviamente que não tendo ideias próprias tem que ter algumas ideias,
mesmo que pense que não as tem. São as ideias dominantes que, nas nossas
sociedades, tendem a ser as ideias de uma classe política muito pequena e de
formadores de opinião, também muito pequena, dada a grande concentração dos
meios de comunicação social. E é aí que se cria um senso comum muito restrito a
partir do qual se analisa a realidade. Este senso comum é ainda enviesado pela
suposta cientificidade do direito que, ao contribuir para a sua despolitização,
cria a ficção de uma prática jurídica pura e descomprometida. (SANTOS, 2011, p.
57).
Nessa perspectiva, é possível compreender a Ação Civil Pública
Cível proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Comarca de
Franca, na 3ª Vara Cível, sobre um trote ocorrido na Universidade de Franca
(UNIFRAN), no qual alunas aprovadas no vestibular proferiram um “hino [...]
machista, misógino, sexista e pornográfico” (ACP).
Para explicar sua decisão favorável ao aluno que orquestrou
o hino, a juíza cita que “Apesar de vulgar e imoral, o discurso do requerido
não causou ofensa à alegada coletividade das mulheres, a ensejar a pretendida
indenização” (ACP). Sob a ótica de Boaventura, é notório a falta da formação
permanente da magistrada visto a ignorância da realidade social da mulher,
marcada pelo alto risco de estupro. Segundo 13º Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, publicado em 2019, entre 2017 e 2018 o aumento no número de estupros
foi de 5%, o que equivale a aproximadamente 13 mil casos (ACAYABA, REIS; 2019).
Logo, afirmar que a incitação de um estupro não ofende às mulheres mostra-se
desconexo com a realidade brasileira.
Dessa forma, a reformulação do sistema de justiça bem como do
ensino jurídico mostra-se não somente benéfica à sociedade, mas essencial para
que ela não permaneça à mercê das ideias dominantes e, em muitos casos,
ignorantes, Nesse sentido, o foco na formação permanente dos profissionais do
direito levaria a uma melhor capacitação destes para responder aos novos
problemas sociais e, consequentemente, levaria a uma melhor resposta. Além do
mais, a ampliação do sistema de justiça também é fundamental, a exemplo das
promotoras legais, as quais realizam decisões mais contextualizadas e
assertivas quanto a realidade social e evitam evitando a desconexão com esta -
a exemplo do ocorrido no julgado.
Seguindo, a magistrada expõe um senso comum acerca dos movimentos
feministas contemporâneos, como a crença que o feminismo consiste em lutar para
“fazer as mesmas coisas que os homens” ou que o “movimento feminista apenas colaborou
para a degradação moral”. Esse pensamento é reflexo da ideologia dominante que
não estuda sobre o feminismo – nem suas vertentes – e o coloca como causa dos
problemas morais. Este argumento não tem base científica, o que compromete a
sustentação da decisão proferida e promove a descrença no sistema judiciário, o
qual encontra-se totalmente atrasado ou desinformado quanto a realidade.
Portanto, é necessário notar que para melhorar a justiça,
não só no aspecto de acelerar as decisões, mas especialmente no aspecto qualitativo
destas, é necessário que o magistrado, o operador do direito, atualize-se constantemente,
isto é, foque na sua formação permanente, estude as mais variadas posições e
valorize os diversos saberes a fim de proferir decisões melhores e adequadas ao
contexto social. Somado a isso, é importante a reformulação do ensino jurídico
por meio dá valorização de outras formas de justiça e outros saberes jurídicos
de modo a contribuir cientificamente para a revolução do direito e de todo o
sistema jurídico.
Bibliografia
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução
democrática da justiça. 3a. Edição. São Paulo: Cortez, 2011.
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