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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Furtos famélicos, ficções democráticas e o triunfo do individualismo

 No mês passado, viralizaram na internet registros de pessoas procurando o que comer em um caminhão de lixo, em Fortaleza. Tal situação extrema é apenas um dos ilustrativos da miséria e fome que acometem as camadas mais vulneráveis da sociedade, agora, agravadas no cenário pandêmico. É nesse contexto caótico que o furto famélico ganhou destaque no âmbito do Judiciário, especialmente nas instâncias superiores. No presente texto, portanto, é estabelecida a correlação entre o julgado de furto famélico Resp. N° 1936078-SP (2021/0130875-7) e o pensamento de Antoine Garapon, magistrado e sociólogo estudado nas aulas da disciplina de Sociologia Jurídica.

Primeiramente, o que chama a atenção no exemplo é que o réu furtou um perfume de valor ínfimo, isto é, cometeu um delito pequeno, mas, mesmo assim, esta questão está sendo resolvida pelo STJ. Sob a óptica de Garapon, isso poderia ser explicado com base no conceito de magistratura de sujeito, que pode ser sintetizado do seguinte modo: na contemporaneidade neoliberal, há uma judicialização de demandas sociais que não foram suficientemente supridas no campo da política, gerando uma espécie de tutelarização do sujeito por parte do poder Judiciário.

Nessa linha de pensamento, é possível visualizar a aplicação desse conceito na prática retornando atentamente à forma como foi iniciado esse texto, isto é, com uma breve contextualização que permite inferir um pano de fundo SOCIAL (miséria e fome no contexto da pandemia), bem como a quase total ausência de políticas públicas capazes de mitigar tais mazelas, devido a uma autoridade faltosa. Isso é confirmado a partir do fato de que o Conselho Nacional de Segurança Alimentar foi extinto no governo atual.

A questão observada se trata, em última análise, de uma disfuncionalidade que remete ao antigo embate entre igualdade formal e igualdade material, no qual qualquer análise mais atenta expõe um abismo entre a letra vaga da lei e a “fragilidade do indivíduo de carne e osso”. Tal discrepância exige um Direito mais regulador, garantidor de mais direitos, prejudicados pela falta (tão cara ao neoliberalismo) de positivação e intervenção.

Em conclusão, a máxima neoliberal do individualismo tem o seu preço, qual seja, um efeito próprio do campo jurídico de gerar a tutelarização de alguns sujeitos, que, sem tal proteção, sequer teriam uma identidade social reconhecida, pois estariam fadados à marginalidade, como no evento das pessoas que perseguiam o caminhão de lixo e dos milhares de casos de furto famélico no Brasil.


Isabela Mansi Damiski - Direito Matutino



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