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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Tutelarização do sujeito e direitos fundamentais das mulheres

    Contrário a qualquer controle do Estado sobre os mecanismos de mercado, o neoliberalismo nasce no segundo pós-guerra como uma reação ao estado intervencionista e de bem-estar, entendido como uma ameaça à liberdade econômica e política. À luz da visão neoliberal, o equilíbrio e o igualitarismo propostos pelo keynesianismo destruíam a principal fonte da prosperidade coletiva: a livre concorrência, o que, por conseguinte, suprimia a liberdade individual e condicionava os cidadãos, por mais particulares que fossem, a seres de semelhante comportamento. Esse ideal dogmático e incisivo, que exigia da sociedade plena aceitação, foi capaz de ocupar todos os espaços e disseminar amplamente seus princípios. Nesse sentido, o jurista francês Antoine Garapon vai afirmar que, o individualismo, tão sustentado pelas premissas neoliberais, será responsável por transformar política e juridicamente toda estrutura social.

A valorização do âmbito individual exige que o sujeito seja legislador de sua própria vida e supere a ordenação do estado de bem-estar social. Desse modo, o que antes era tutelado por laços hierárquicos naturalmente estabelecidos, passa a ser enfrentado por cada indivíduo em sua autodeterminação, o que resulta na condição de “magistratura do sujeito”. Esse conceito é apresentado por Garapon para explicar o papel que o judiciário assume nessa nova conjuntura; incapazes de sustentar a autonomia agora exigida, as pessoas desamparadas transformam-se em demanda para o Direito, que estará encarregado de intervir em assuntos particulares e garantir que normas sociais antes implícitas sejam efetivadas. Assim sendo, família, política, moral, religião, entre outras instituições, terão seus preceitos positivados, explicitados e tutelados por tribunais que assumirão o papel de protagonista em deliberações de toda natureza.

No Brasil não é diferente, uma vez que o judiciário sintetiza a resolução de questões que ultrapassam a moral, a intimidade e o autogoverno, como pode ser observado no voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento do habeas corpus n. 124.306/RJ. A declaração refere-se ao posicionamento assumido pelo ministro e os fundamentos sustentados para a defesa da descriminalização da interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. No julgado, os pacientes tiveram sua prisão preventiva decretada pela 4ª Câmara Criminal do TJRJ sob o fundamento de garantia da ordem pública e de necessidade de assegurar a efetivação da lei e, logo, solicitavam HC.

O voto do ministro recebe destaque pois discorre em defesa dos direitos fundamentais das mulheres e abre os olhos para uma realidade social cuja prática acontece à margem da lei e coloca em risco a saúde física e psicológica de muitas brasileiras todos os dias. “A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria."

Em uma explícita demonstração do Direito como tutor dos cidadãos, o exemplo demonstra como a justiça não só amplia suas intervenções, mas também é alvo de solicitações feitas por pessoas que anseiam por resoluções justas, que resguardem seus direitos, quando a resposta extrajudicial já não é mais eficiente. Além disso, o julgado confirma a importância que os tribunais exercem nessa conjuntura de protagonismo, haja vista que um tema como o aborto, objeto de saúde pública, que envolve os direitos sexual, reprodutivo e de conservação de escolhas pessoais somente das mulheres é ainda assim muitas vezes dissociado pela norma da vontade daquelas que sofrem diretamente com sua criminalização, sendo urgente a legitimação e o esclarecimento dessa garantia por meio do judiciário, tamanha autoridade colocada sobre esse poder pelo imaginário popular da democracia neoliberal.

Giovanna Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino

 

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