Contrário
a qualquer controle do Estado sobre os mecanismos de mercado, o neoliberalismo
nasce no segundo pós-guerra como uma reação ao estado intervencionista e de
bem-estar, entendido como uma ameaça à liberdade econômica e política. À luz da
visão neoliberal, o equilíbrio e o igualitarismo propostos pelo keynesianismo
destruíam a principal fonte da prosperidade coletiva: a livre concorrência, o
que, por conseguinte, suprimia a liberdade individual e condicionava os
cidadãos, por mais particulares que fossem, a seres de semelhante comportamento.
Esse ideal dogmático e incisivo, que exigia da sociedade plena aceitação, foi capaz
de ocupar todos os espaços e disseminar amplamente seus princípios. Nesse
sentido, o jurista francês Antoine Garapon vai afirmar que, o individualismo, tão
sustentado pelas premissas neoliberais, será responsável por transformar política
e juridicamente toda estrutura social.
A valorização do âmbito individual exige
que o sujeito seja legislador de sua própria vida e supere a ordenação do
estado de bem-estar social. Desse modo, o que antes era tutelado por laços
hierárquicos naturalmente estabelecidos, passa a ser enfrentado por cada indivíduo
em sua autodeterminação, o que resulta na condição de “magistratura do sujeito”.
Esse conceito é apresentado por Garapon para explicar o papel que o judiciário
assume nessa nova conjuntura; incapazes de sustentar a autonomia agora exigida,
as pessoas desamparadas transformam-se em demanda para o Direito, que estará encarregado
de intervir em assuntos particulares e garantir que normas sociais antes
implícitas sejam efetivadas. Assim sendo, família, política, moral, religião,
entre outras instituições, terão seus preceitos positivados, explicitados e
tutelados por tribunais que assumirão o papel de protagonista em deliberações
de toda natureza.
No Brasil não é diferente, uma vez que o
judiciário sintetiza a resolução de questões que ultrapassam a moral, a
intimidade e o autogoverno, como pode ser observado no voto-vista do Ministro
Luís Roberto Barroso no julgamento do habeas corpus n. 124.306/RJ. A declaração
refere-se ao posicionamento assumido pelo ministro e os fundamentos sustentados
para a defesa da descriminalização da interrupção voluntária da gestação no
primeiro trimestre. No julgado, os pacientes tiveram sua prisão preventiva
decretada pela 4ª Câmara Criminal do TJRJ sob o fundamento de garantia da ordem
pública e de necessidade de assegurar a efetivação da lei e, logo, solicitavam
HC.
O voto do ministro recebe destaque pois discorre
em defesa dos direitos fundamentais das mulheres e abre os olhos para uma
realidade social cuja prática acontece à margem da lei e coloca em risco a
saúde física e psicológica de muitas brasileiras todos os dias. “A
criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os
direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo
Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve
conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e
psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos
da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto,
a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa
matéria."
Em uma explícita demonstração do Direito
como tutor dos cidadãos, o exemplo demonstra como a justiça não só amplia suas intervenções,
mas também é alvo de solicitações feitas por pessoas que anseiam por resoluções
justas, que resguardem seus direitos, quando a resposta extrajudicial já não é
mais eficiente. Além disso, o julgado confirma a importância que os tribunais
exercem nessa conjuntura de protagonismo, haja vista que um tema como o aborto,
objeto de saúde pública, que envolve os direitos sexual, reprodutivo e de
conservação de escolhas pessoais somente das mulheres é ainda assim muitas
vezes dissociado pela norma da vontade daquelas que sofrem diretamente com sua
criminalização, sendo urgente a legitimação e o esclarecimento dessa garantia
por meio do judiciário, tamanha autoridade colocada sobre esse poder pelo
imaginário popular da democracia neoliberal.
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