<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>
Na atualidade, é evidente, não apenas no Brasil, mas também em
outros países ao redor do globo, como a França e os Estados Unidos, o crescente
protagonismo do Poder Judiciário. E a explicação para essa maior influência, de
acordo com o magistrado francês Antoine Garapon, reside primordialmente em
fatores sociais e políticos, em detrimento aos fenômenos puramente jurídicos.
Como Garapon explica em sua obra “O Juiz e a Democracia: O Guardião de
Promessas” (1999), a expansão jurídica relaciona-se à própria dinâmica das
sociedades democráticas. Como ele mesmo diz: “A explosão do número de processos
não é um fenômeno jurídico, mas social. Ele se origina da depressão social que
se expressa e se reforça pela expansão do direito”. A ascensão do Judiciário,
portanto, insere-se em um contexto marcado pelo término da Guerra Fria e pelo
avanço do neoliberalismo, que culminam em uma crise de representação
político-partidária ao mesmo tempo em que o acesso à justiça e a instituição
das garantias constitucionais ampliam-se, de modo que a hiperjudicialização se dá em razão da hiperconscientização de direitos.
Sendo assim, Garapon constata a existência de uma “democracia
desencantada”, em que “A justiça não apenas deve multiplicar suas intervenções
– o que já é em si um desafio -, mas é também, ela própria, objeto de novas
solicitações. Quer lhe sejam submetidas questões morais difíceis, como as
relativas à bioética ou à eutanásia, quer lhe seja solicitado remediar
prejuízos causados pelo enfraquecimento dos vínculos sociais na população
marginalizada, a justiça se vê intimada a tomar decisões em uma democracia preocupada
e desencantada”. Dessa maneira, em uma nova configuração democrática, em que se
pressupõe a igualdade de condições entre os homens, fabrica-se “o que antigamente
era outorgado pela tradição, pela religião ou pelos costumes. Forçada a
inventar a autoridade, sem sucesso, ela acorre então para o juiz [...] O preço
a ser pago pela liberdade é o maior controle do juiz, a interiorização do
direito e a tutelarização de alguns sujeitos”. Pode-se inferir, portanto, e de
acordo com o próprio Garapon, que ocorre a transformação de uma obrigação
social em uma norma positivada.
Isto tudo posto será de grande valia para que se pense sobre a
Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal. Essa decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a união homoafetiva como um
núcleo familiar, completou 10 anos em 5 de maio de 2021 e foi um marco
histórico, colocando o Brasil como o primeiro país a reconhecer a união estável
de casais homossexuais na Justiça. Inclusive, a Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO) elevou essa decisão à categoria
de patrimônio documental da humanidade. Até a data de 5 de maio de 2011, a
união de pessoas do mesmo sexo não era reconhecida como entidade familiar, o
que implicava na não obtenção dos mesmos direitos assegurados aos casais
heteroafetivos, o que no entendimento dos juízes, feria os preceitos de
liberdade e igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurados
pela Constituição Federal. Fica evidente, desse modo, que o protagonismo “do(s)
tribunal(is)” nesse caso, foi de extrema importância para que se efetivasse o
direito de uma minoria.
Contudo, é importante notar que esse é um primeiro passo. O Brasil
é um país conservador, e, inclusive, encontra-se imerso em uma onda de
conservadorismo sem precedentes, que busca minar os direitos de minorias. Além
disso, por ser um país majoritariamente religioso, grupos minoritários, como a
comunidade LGBT+, encontram-se desamparados pelo Congresso Federal e pela
legislação, uma vez que o número de deputados e senadores que passam a integrar
a conhecida “bancada evangélica” é crescente. Em 2019, por exemplo, estima-se
que o número de deputados aliados a essa frente parlamentar era de 203. Por isso, a via da Justiça, da judicialização,
até agora, foi a opção que mais valeu-se em efetivar os direitos dessa
comunidade. Desse modo, como afirma Garapon, o “direito transforma-se em uma
moral por ausência”, invadindo a “moral, a intimidade e o autogoverno”,
intimando a democracia a “inventar novas maneiras de resolver os conflitos e de
proteger os indivíduos frágeis”.
Por fim, o fato é que a sociedade está em constante transformação e
devido a isso, surgem novas demandas sociais que merecem destaque. Mesmo em
2002, já no século 21, uma ADI como a 4277 parecia impensável – uma vez que o
novo Código Civil, do mesmo ano, traz em seu Art. 1.723 o seguinte: “É
reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Portanto,
se no cenário atual os indivíduos estão mais conscientes de seus direitos, a
tal da hiperconscientização antes
mencionada, e não há espaço e nem mobilização dos outros dois poderes, o
Executivo e o Legislativo, fazendo um paralelo com a Química e
com o Princípio de Le Chatelier, é possível pensar o seguinte: de acordo com a
equação Legislativo + Executivo +
Judiciário ⇄ Equilíbrio de poderes, se mantida a proporção correta entre
reagentes e produtos, a equação se manterá equilibrada. Os reagentes estão na
mesma proporção 1:1. Ao aumentarmos a “concentração” do Judiciário, as “concentrações”
do Legislativo e do Executivo diminuem e o equilíbrio é deslocado no sentido de
formação de produtos, aumentando a “concentração” do Equilíbrio de poderes. Se
a “concentração” do Executivo aumenta, a do Legislativo e do Judiciário
diminuem e é a mesma história, ou seja, o aumento de protagonismo de um poder
na falta dos outros pode ser encarado como uma espécie de suprimento e esforço
para que se mantenha o equilíbrio.
Laura Ruas, Direito Matutino
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