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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Direito mobilizado: politização jurídica ou disputa por um universo político?


    No dia 5 de Maio de 2011, pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 (ADPF 132) promovida por meio do STF (Supremo Tribunal de Justiça), a união homoafetiva foi reconhecida como um instituto jurídico. A justificativa dada para sua legitimidade foi a realização de uma interpretação conforme a Constituição ao Artigo 1723 do Código Civil, o qual define que “ é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher”. Uma hermenêutica à luz dos princípios constitucionais para o disposto mencionado contempla o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, incluindo a liberdade para dispor da própria sexualidade; a proibição da discriminação em razão de sexo ou gênero; além do direito à intimidade e à vida privada.    

    Dessa maneira, uma entre as mais altas instâncias jurídicas determinou a família como uma categoria sócio-cultural, podendo ser constituída de maneira hétero ou homoafetiva. Além disso, sua formação deve ser garantida para todas as pessoas que a desejarem, como uma maneira de assegurar a dignidade humana. Contudo, em contraposição ao que foi exposto acima, o pensador Antoine Garapon, em sua obra “O juiz e a democracia”, ao discorrer sobre o crescente papel dos tribunais na Modernidade como mecanismo de proteção a pessoas denominadas “frágeis”, em um cenário de indeterminação de direitos, afirma que a transposição de tais problemas ao universo jurídico pode comprometer os vínculos sociais. 

    Nesse sentido, tendo como pano de fundo para análise o neoliberalismo, a vulnerabilização de sujeitos é percebida por Garapon. No entanto, ao remeter-se a uma possível “solidariedade entre classes que havia estruturado a identidade nacional” (GARAPON, p. 140), anterior à Modernidade, ele afirma que essa tutela jurídica é uma maneira de desassociação. Portanto, para Garapon, essa nova forma de se pensar o Direito não é encarada da mesma perspectiva positiva que a determinada pelo STF, pois o pensador acredita que tais questões devam ser solucionadas espontaneamente pelos costumes, como afirma que ocorria antes do crescente papel dos tribunais. 

 Para acrescentar, o jurista declara que esse processo é essencialmente político, haja vista que ele é capaz de conferir a dignidade a quem foi negada. Em face do exposto, há de se questionar: pode-se pensar efetivamente em uma solidariedade de classes e, se sim, a falta de equilíbrio social mencionada é reflexo da tutela jurídica ou essa última é consequência de tal desarmonia? Além disso, a que ponto questões como a união homoafetiva seriam solucionadas por meio de costumes ou de outras autoridades, como religiosas e paternais? O judiciário está sendo politizado ou decisões que marcam um histórico de violências simbólicas nele também eram políticas? É possível pensar na autoridade das magistraturas de maneira unívoca ao se analisar um julgado com 15 amicus curiae, omitindo a influência dos movimentos sociais no Direito?

Diante de tais questionamentos, é necessário observar o histórico de criminalização e marginalização da população LGBTQ+. Entre os séculos XIII e XIV, a Inquisição em Portugal perseguiu e assassinou esse grupo. Costume e moral católica que ainda ecoam nos dias atuais, pois, em 2021, o Padre Paulo Antônio Muller declarou em uma missa: “não chamem relações de viados e lésbica de casamento”. Como consequência dessas normas de cunho religioso, o Direito português assimilou a LGBT+fobia institucionalizada e a incorporou no Brasil, nas Ordenações Filipinas, sendo os ditos sodomitas (homens que se relacionam com homens) e as tríbades (mulheres que se relacionam com mulheres) criminalizados. A criminalização das relações LGBTQ+ só se findou no Brasil em 1830. A união homoafetiva foi possível em 2011, assim como a criminalização da LGBT+fobia somente ocorreu em 2019. 

Portanto, pensar nesses conflitos sociais é perceber que, antes da modernidade vir à tona, não é consenso uma realidade de solidariedade e equilíbrio social citada por Garapon. A noção de que a disputa pelo direito à existência de setores marginalizados não é necessariamente uma consequência do protagonismo dos tribunais, mas sim um reflexo no judiciário, que passou a ser visto como campo de luta por tais garantias, é essencial. Da mesma maneira, restringir a resolução de conflitos sociais para âmbitos de outras autoridades é recorrer a um histórico de violências, pois o discurso aqui analisado do Padre Paulo demonstra o pouco espaço para que as soluções alcançadas pelo plano religioso afirmem, obrigatoriamente, direitos de minorias como a LBGTQ+. Ademais, não se deve negar que a decisão tomada pelo STF possui um cunho político ao conferir dignidade humana para tais grupos, mas pensar em um ordenamento jurídico que negou essa vida digna (ou apenas uma vida) é entendê-lo também de forma política. 

Jovanna Baby, em seu livro “Bajubá Odara: resumo histórico do nascimento do movimento de travestis no Brasil” relata como ela e outras muitas travestis já foram detidas, em 1979, por serem enquadradas na conhecida “Lei da Vadiagem”. A negação do direito à circulação nas ruas foi uma postura política dos tribunais, antes da tutela dos direitos dessas minorias. Logo, compreende-se os reflexos da mudança social promovida por movimentos como o LGBTQ+ em decisões como a do STF, não sendo ela uma declaração simplesmente jurídica. Garapon diz que o Direito invade a intimidade e a moral, o STF menciona que reconhecer o casamento homoafetivo é garantir o direito à intimidade. Amicus Curiae como o GGB (Grupo Gay da Bahia) e a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais) reclamaram à justiça a possibilidade da criação da intimidade, assim como um novo olhar sobre a moral. Pensar nesse caso é observar o Direito como algo que não é invasivo, mas possibilitador de garantias fundamentais. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999.  [Cap. VI : “A magistratura do sujeito”, p. 139-153]  


TREVISAN, João Silvério. Pessoas LGBT+ na história. Cartilha: seminário de formação de ativistas LGBT+. Organizada por: Associação da Parada de Orgulho LGBT de São Paulo (APOLGBT-SP). 28 de Out. 2021. 


MESQUITA, Allan. ‘Não chamem relações de viados e lésbica de casamento', diz padre durante missa em MT. Gazeta Digital. 15 de Jun. 2021. Disponível em: https://www.gazetadigital.com.br/editorias/cidades/no-chamem-relaes-de-viados-e-lsbica-de-casamento-diz-padre-durante-missa-em-mt/657382. Acesso em: 07 de Nov. 2021. 


BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 132 (ADPF- 132). UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 14 Out. 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633. Acesso em: 07 de Nov. 2021. 


SILVA, Jovanna Cardoso da. Bajubá Odara: resumo histórico do nascimento do movimento social de travestis e transexuais no Brasil. Picos, PI: Jovanna Cardoso da Silva, 2021.


Letícia Magalhães, Noturno.

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