O julgamento do habeas corpus- HC 154.248 mostrou-se de suma relevância ao combate contra o racismo velado presente na sociedade brasileira atual. Sua importância evidencia-se por sustentar que injúria racial seja considerado como crime de racismo, passando a ser, pois, inafiançável e imprescritível. Trata-se de uma medida que não só finda com a falta de sanção até então visível nos casos precedentes julgados, como também reforça que o racismo é, além de moralmente errado, mas também passível de severa punição.
Tal debate é necessário, uma vez que a jurisprudência utilizada até então no Brasil adotou, por convenção, que injúria racial não seria configurada como crime de racismo, sendo, portanto, contraditoriamente tida como “injúria qualificada por preconceito não racista”. Por consequência dessa postura jurídica, muitos dos casos denunciados ao judiciário acabavam sendo configurados não como crime de racismo, sujeito a penas mais severas, mas como injúria racial, fato o qual abranda a pena e faz com que, muitas vezes, passem impunes casos escancarados de racismo. Essa opção, muitas vezes tomada pelo judiciário, em não configurar o racismo em situações em que o mesmo claramente se manifesta é um dos motivos , inclusive, para a ausência de condenações por racismo no Brasil, algo denunciado pela petição como sendo apenas uma ilusão engendrada a fim de afirmar que tal preconceito é inexistente no país.
Além de mascarar o racismo que assola a nação brasileira, tal postura da jurisprudência fomenta uma impunibilidade frente às denúncias de crimes raciais, uma vez que a pena referente ao crime de injúria racial, contemplado no artigo 140 do Código Penal, é passível de prescrição ou de decadência, o que, por sua vez, faz com que muitos desses casos sequer sejam analisados ou julgados.
A partir de tudo que foi dito, faz-se preciso analisar que em casos como este apresentado anteriormente, o judiciário apresenta-se como o Poder responsável por resolver essas intrigas e por atenuar os problemas sociais presentes na sociedade. Evidencia-se isso ao visualizar que o STF decidiu, após analisar o habeas corpus, por considerar todo crime de injúria racial como crime de racismo, pondo fim ao problema denunciado.
Tal modo de atuação do judiciário é chamado por Antoine Garapon, jurista francês, como “a magistratura do sujeito”, uma vez que cada vez mais os tribunais se valem de preceitos constitucionais para atender às demandas sociais, muitas vezes abrindo mão do tecnicismo do direito, para resolver problemas de ordem ética e moral. O fenômeno da judicialização, fato que entende-se por ser uma consequência do modo como a democracia e o Estado de Direito atuam contemporaneamente, influencia na maior importância do Poder Judiciário frente às pressões sociais, uma vez que o mesmo é o mais solicitado, dentre os três Poderes, a solucionar as denúncias e atender aos anseios populares.
Essa hipertrofia do Poder Judiciário tem como causas algumas características da sociedade moderna. O modelo neoliberal de economia, que por sua vez afrouxa os vínculos trabalhistas e a todo momento ameaça os direitos conquistados pelos trabalhadores ao longo de anos de greves e protestos, a crise político-partidário que o país vem enfrentando a anos e a perda da representatividade dos políticos eleitos pelo povo, muito mais voltados a interesses pessoais do que públicos, fomentaram a maior atuação dos tribunais. Com os Poderes Executivo e Legislativo não resolvendo os problemas sociais, tem-se, como efeito, a potencialização das funções do Judiciário, atuando nos campos em que os demais poderes negligenciam.
Barroso, ao se atentar sobre o tema, afirma que “A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo.”. Nessa realidade, em que falta ao povo serem garantidos os seus direitos básicos, por conta de políticas públicas ineficazes ou ausentes, ou por leis inócuas e não aplicadas na prática, vê-se o aumento da atuação judicial, que passa a engendrar o que Garapon chama de “tutelarização do sujeito”, uma vez que o Poder Judiciário, por ser o único dos poderes a atender às solicitações sociais, passa a se atribuir a função de protetor definitivo dos direitos do indivíduo, e de garantidor de seu bem-estar.
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