Resumo do caso real: A Fazenda Pública do Estado de São Paulo impetrou, em
2013, ação de obrigação de fazer contra o Estado de São Paulo. Objeto da lide: tutela
antecipada em favor de transexual que pleiteava cirurgia de mudança de sexo e
alteração de registro civil, de masculino para feminino.
Para tanto a petição da Fazenda Pública elenca diversos argumentos em favor da
tutela: Ei-los:
- jurisprudências com boa acolhida no TJ-SP e no STJ, bem como enunciados
em Jornadas de Direito Civil com base no artigo 13 do Código de mesma natureza –
permissão de disposição do próprio corpo para cirurgias de transgenitalização;
- desnecessidade de manutenção intocável do horizonte simbólico que impõe
padrões para prática de sexualidade e despreza outros comportamentos;
- compreensão de que a transexualização não é patologia médica. Ao contrário, a
tentativa de imposição de moral-padrão heterossexual pode levar os transexuais a
sofrimentos psíquicos e psicológicos decorrentes de preconceito;
- a patologia supracitada, de modo inverso, está na pessoa que tenta, de forma
administrada e preconceituosa, tratar as diferenças como enfermidades, bem como é
incapaz de conviver com tais diferenças e que, ao patologizar a diversidade, pratica a
mais rasteira desumanização;
- Artigo 5.º da Constituição, que prevê o direito à identidade dos transexuais
como valor fundamental – cabe ao Estado ofertar instrumentos médicos para mudança
de sexo e permitir a alteração do direito civil;
- Dutibilidade da Constituição, que impõe todas as formas do viver;
- requerente se identifica como mulher desde os 15 anos de idade, efetua
intervenções hormonais e sofre contínuo preconceito e é submetida a comportamentos
alheios degradantes;
- laudos psicológicos corroboram o sofrimento psíquico da requerente, que tem
sofrido de sentimento de inadequação e o transtorno de identidade de gênero pode levar
as transexuais à depressão;
- cirurgia custaria R$ 20 mil reais em hospital particular – custo que a pleiteante
não poderia arcar;
- condição sexual não significa incapacidade mental, bem como terapias
psiquiátricas e psicológicas podem não ter efeito de alívio do sofrimento mental;
- a patologia, de fato, está na sociedade, que insiste em manter caráter
tecnológico de relações familiares hierarquizadas e ver as diferenças como defeitos e;
- direito à identidade é componente do rol de Direitos Humanos.
Texto proposto – Autor Antoine Garapon - O teor de tal caso pode se
relacionar ao conteúdo do texto de Antoine Garapon, em seu livro “O juiz e a
Democracia”, de modo mais específico no capítulo “A Magistratura do Sujeito”.
Garapon discorre que a demanda por justiça qualitativa e quantitativa produzem novas
manifestações no sentido de ampliação dos direitos, bem como a decorrência da
democracia gera desejos por maior igualdade de condições humanas e é aguçadora de
conflitos. A sociedade democrática desfaz laços sociais e trinca laços produzidos por
religião, tradições e costumes. Em função disso, a função do juiz exige controle para
coibir intervenção ilegítima e este é um preço a ser pago por maior controle de
liberdade.
O supracitado maior controle de liberdade pode ser considerado o cerne da
petição citada neste trabalho – Fazenda Pública de São Paulo pleiteia tutela antecipada a
uma transexual para que a cirurgia de mudança de sexo seja feita em hospital público e
que haja o direito assegurado de identificação civil.
Garapon discorre sobreo fato de que os textos franceses do Código Civil nos
séculos XIX e XX baseiam-se em trocas comerciais praticadas por bons pais de família
e que existe dentro do conceito tradicional de família a relação pai – filho era quase
comercial, como chefe e empregado. Garapon recorre a Tocqueville, que intui a
condição de pai de família como um direito natural de quase magistrado. Aos poucos, a
onda igualitária do final do século XIX, com ampliação dos direitos da criança e das
mulheres (divórcio). OU seja, ampliação dos direitos das mulheres pressupõe novas
formas de organização familiar e todas as formas de viver devem ser igualmente
respeitadas.
A Europa recepcionou novas leis de família com base em decisões judiciais e o
juiz deve atuar como conselheiro e ministro da equidade, bem como o legislador deve
delegar ao juiz o cuidado de tratar do conteúdo das relações. Tais novas leis
acompanham pari-passu o respeito ao modo de viver a individualidade da sociedade e o
Estado deve ser provedor dos mais modestos.
A interiorização do direito/norma norteia a atividade de reinventar aquilo que
lei positiva – não só aplicar a lei é importante, mas reinventar a lei é fundamental. Tal
raciocínio antecipatório é fundamental para o desenvolvimento de nova sociedade com
novos direitos.
A modernidade impõe ao ser humano ser convertido em jurista por necessidade
e o preço de tal conversão é sua autonomia – Garapon exemplifica que cabe a cada
pessoa determinar a quantidade de droga utilizada como abuso ou não abuso
(“adequado”). As ações de tutela de pessoas frágeis devem propor o respeito a tais
pessoas, e tal respeito deve ser considerado pelas palavras e a fragilidade deve ter
proteção judiciária. Tornar-se legislador da própria vida corresponde à tutela dos
sujeitos desamparados e a magistratura de um sujeito corresponde à tarefa política
essencial.
Garapon ainda defende que a Justiça deve ser invocada para se pronunciar sobre
direitos (liberdade) e autonomia (tutela), em casos de relações entre cônjuges e guarda
de crianças. Para tanto, o juiz deve ter novas funções, como assistir à família e aos mais
necessitados. Assim, reúne novas atividades como assistente social, educador e
terapeuta.
A defesa do individualismo acompanha a crescente tutelarização do sujeito, pois
os costumes não resolveram a necessidade de ampliação de tutela. Assim, a Justiça, ao
invadir a moral e a intimidade, intima a democracia a inventar novas maneiras de
resolver conflitos e de proteger os indivíduos frágeis.
Relação entre Garapon e o caso prático: apesar de Garapon utilizar o termo
juiz e tratar de forma amiúde sobre família, o caso da petição da Fazenda Pública do
Estado de São Paulo carrega de forma marcante proposituras (sublinhadas) do texto de
Garapon.
A Fazenda Pública, em sua petição:
- defende a individualidade de transexual sem condições de fazer cirurgia de
mudança de sexo em hospital privado, tutelando a melhor condição de uma pessoa que
sofre as dores psíquicas do preconceito;
- preceitua que a moral “tradicional” não deve ser motivo de tristeza e de
sofrimento de qualquer ser humano, que tem direito à identidade plena;
- assegura a liberdade de viver de forma livre conforme o artigo 5.º da
Constituição;
- eleva o respeito a qualquer ser humano como valor fundamental de dignidade,
independentemente de sua maneira de usufruir a liberdade;
- defende o respeito como valor político fundamental;
- tutela o direito dos mais modestos e;
- corrobora a democracia como valor fundamental para qualquer sociedade e tal
valor pressupõe que cada ser humano deve viver de forma livre.
CURSO: DIREITO – Período Noturno
Disciplina: Sociologia do Direito
Ricardo Camacho Bologna Garcia – Número UNESP: 211221511
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