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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Cirurgia de Transexualidade e Antoine Garapon

 Resumo do caso real: A Fazenda Pública do Estado de São Paulo impetrou, em

2013, ação de obrigação de fazer contra o Estado de São Paulo. Objeto da lide: tutela

antecipada em favor de transexual que pleiteava cirurgia de mudança de sexo e

alteração de registro civil, de masculino para feminino.

Para tanto a petição da Fazenda Pública elenca diversos argumentos em favor da

tutela: Ei-los:

- jurisprudências com boa acolhida no TJ-SP e no STJ, bem como enunciados

em Jornadas de Direito Civil com base no artigo 13 do Código de mesma natureza –

permissão de disposição do próprio corpo para cirurgias de transgenitalização;

- desnecessidade de manutenção intocável do horizonte simbólico que impõe

padrões para prática de sexualidade e despreza outros comportamentos;

- compreensão de que a transexualização não é patologia médica. Ao contrário, a

tentativa de imposição de moral-padrão heterossexual pode levar os transexuais a

sofrimentos psíquicos e psicológicos decorrentes de preconceito;

- a patologia supracitada, de modo inverso, está na pessoa que tenta, de forma

administrada e preconceituosa, tratar as diferenças como enfermidades, bem como é

incapaz de conviver com tais diferenças e que, ao patologizar a diversidade, pratica a

mais rasteira desumanização;

- Artigo 5.º da Constituição, que prevê o direito à identidade dos transexuais

como valor fundamental – cabe ao Estado ofertar instrumentos médicos para mudança

de sexo e permitir a alteração do direito civil;

- Dutibilidade da Constituição, que impõe todas as formas do viver;


- requerente se identifica como mulher desde os 15 anos de idade, efetua

intervenções hormonais e sofre contínuo preconceito e é submetida a comportamentos

alheios degradantes;

- laudos psicológicos corroboram o sofrimento psíquico da requerente, que tem

sofrido de sentimento de inadequação e o transtorno de identidade de gênero pode levar

as transexuais à depressão;

- cirurgia custaria R$ 20 mil reais em hospital particular – custo que a pleiteante

não poderia arcar;

- condição sexual não significa incapacidade mental, bem como terapias

psiquiátricas e psicológicas podem não ter efeito de alívio do sofrimento mental;

- a patologia, de fato, está na sociedade, que insiste em manter caráter

tecnológico de relações familiares hierarquizadas e ver as diferenças como defeitos e;

- direito à identidade é componente do rol de Direitos Humanos.


Texto proposto – Autor Antoine Garapon - O teor de tal caso pode se

relacionar ao conteúdo do texto de Antoine Garapon, em seu livro “O juiz e a

Democracia”, de modo mais específico no capítulo “A Magistratura do Sujeito”.

Garapon discorre que a demanda por justiça qualitativa e quantitativa produzem novas

manifestações no sentido de ampliação dos direitos, bem como a decorrência da

democracia gera desejos por maior igualdade de condições humanas e é aguçadora de

conflitos. A sociedade democrática desfaz laços sociais e trinca laços produzidos por

religião, tradições e costumes. Em função disso, a função do juiz exige controle para

coibir intervenção ilegítima e este é um preço a ser pago por maior controle de

liberdade.

O supracitado maior controle de liberdade pode ser considerado o cerne da

petição citada neste trabalho – Fazenda Pública de São Paulo pleiteia tutela antecipada a

uma transexual para que a cirurgia de mudança de sexo seja feita em hospital público e

que haja o direito assegurado de identificação civil.

Garapon discorre sobreo fato de que os textos franceses do Código Civil nos

séculos XIX e XX baseiam-se em trocas comerciais praticadas por bons pais de família

e que existe dentro do conceito tradicional de família a relação pai – filho era quase

comercial, como chefe e empregado. Garapon recorre a Tocqueville, que intui a


condição de pai de família como um direito natural de quase magistrado. Aos poucos, a

onda igualitária do final do século XIX, com ampliação dos direitos da criança e das

mulheres (divórcio). OU seja, ampliação dos direitos das mulheres pressupõe novas

formas de organização familiar e todas as formas de viver devem ser igualmente

respeitadas.

A Europa recepcionou novas leis de família com base em decisões judiciais e o

juiz deve atuar como conselheiro e ministro da equidade, bem como o legislador deve

delegar ao juiz o cuidado de tratar do conteúdo das relações. Tais novas leis

acompanham pari-passu o respeito ao modo de viver a individualidade da sociedade e o

Estado deve ser provedor dos mais modestos.

A interiorização do direito/norma norteia a atividade de reinventar aquilo que

lei positiva – não só aplicar a lei é importante, mas reinventar a lei é fundamental. Tal

raciocínio antecipatório é fundamental para o desenvolvimento de nova sociedade com

novos direitos.

A modernidade impõe ao ser humano ser convertido em jurista por necessidade

e o preço de tal conversão é sua autonomia – Garapon exemplifica que cabe a cada

pessoa determinar a quantidade de droga utilizada como abuso ou não abuso

(“adequado”). As ações de tutela de pessoas frágeis devem propor o respeito a tais

pessoas, e tal respeito deve ser considerado pelas palavras e a fragilidade deve ter

proteção judiciária. Tornar-se legislador da própria vida corresponde à tutela dos

sujeitos desamparados e a magistratura de um sujeito corresponde à tarefa política

essencial.

Garapon ainda defende que a Justiça deve ser invocada para se pronunciar sobre

direitos (liberdade) e autonomia (tutela), em casos de relações entre cônjuges e guarda

de crianças. Para tanto, o juiz deve ter novas funções, como assistir à família e aos mais

necessitados. Assim, reúne novas atividades como assistente social, educador e

terapeuta.

A defesa do individualismo acompanha a crescente tutelarização do sujeito, pois

os costumes não resolveram a necessidade de ampliação de tutela. Assim, a Justiça, ao

invadir a moral e a intimidade, intima a democracia a inventar novas maneiras de

resolver conflitos e de proteger os indivíduos frágeis.


Relação entre Garapon e o caso prático: apesar de Garapon utilizar o termo

juiz e tratar de forma amiúde sobre família, o caso da petição da Fazenda Pública do

Estado de São Paulo carrega de forma marcante proposituras (sublinhadas) do texto de

Garapon.

A Fazenda Pública, em sua petição:

- defende a individualidade de transexual sem condições de fazer cirurgia de

mudança de sexo em hospital privado, tutelando a melhor condição de uma pessoa que

sofre as dores psíquicas do preconceito;

- preceitua que a moral “tradicional” não deve ser motivo de tristeza e de

sofrimento de qualquer ser humano, que tem direito à identidade plena;

- assegura a liberdade de viver de forma livre conforme o artigo 5.º da

Constituição;

- eleva o respeito a qualquer ser humano como valor fundamental de dignidade,

independentemente de sua maneira de usufruir a liberdade;

- defende o respeito como valor político fundamental;

- tutela o direito dos mais modestos e;

- corrobora a democracia como valor fundamental para qualquer sociedade e tal

valor pressupõe que cada ser humano deve viver de forma livre.



CURSO: DIREITO – Período Noturno

Disciplina: Sociologia do Direito

Ricardo Camacho Bologna Garcia – Número UNESP: 211221511

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