A tripartição do Poder, idealizada por Montesquieu e aderida pelo Brasil, prevê, tipicamente, a elaboração das leis por parte do Legislativo, administração pelo Executivo e aplicação pelo Judiciário. No entanto, há uma burocracia muito grande para que as demandas da sociedade sejam reconhecidas pelos parlamentares, aprovadas no Congresso e sancionadas no Planalto, trazendo uma eventual e incerta possibilidade de concretização, que pode não acontecer, ou se acontecer, de forma tardia e desproporcional com a urgência dos querelantes. Discorre Garapon: “A demanda da justiça vem do desamparo da política[...]¹”. Analisando a fala do jurista, o Poder Judiciário toma a frente, protagonizando dentre os demais poderes o compromisso com as petições da sociedade, uma vez que, em casos concretos exige-se do magistrado uma posição diferente da exposta na letra fria da lei ou na sua ausência, uma decisão que busque sanar as pendências dos desamparados.
Tendo em vista que há algumas hipóteses que a tramitação no congresso pode não concretizar um direito, ou concretizar de forma tardia, o nosso ordenamento jurídico reconhece, com sapiência, a jurisprudência como fonte do Direito, que mesmo de forma supletiva, exerce um papel de destaque em diversas questões da sociedade. Sendo assim, Garapon busca equilibrar a moral com a legislação, entendendo que se analisarmos apenas uma e desprezar outra, a justiça não será alcançada, pois, se por um lado o positivismo da lei é insuficiente para abarcar todos os conflitos e interesses da sociedade, por outro, observa-los apenas sob a ótica moralista é abrir espaço para arbitrariedades do juiz, que julga de acordo com sua consciência. É mister um equilíbrio dos dois, para que seja reparado o dano da desigualdade entranhado na sociedade tupiniquim, já que, num Estado Democrático de Direito e na Carta da República a igualdade é basilar em todas as áreas da vida.
Em um julgado recente do STJ (STJ - AgInt no AREsp: 956558 SP 2016/0194543-9), a lei, de per si, não foi capaz de trazer a justiça em sua concretude, logo foi necessário que os ministros tivessem uma visão pós-positivista do caso em concreto, para que fossem reparados os prejuízos já sofridos pelo querelante. Trata-se de um senhor de idade que, iniciou seu labor em zonas rurais aos 12 anos de idade e pedia que fosse reconhecido os anos em que trabalhou dos 12 aos 16 (quando começou a contribuir à Previdência Social) no cálculo de contribuição para que pudesse se aposentar mais brevemente (e justamente). Contudo, o motivo dos tribunais anteriores terem negado tal pedido, estava calcado na lei, que prevê que é apenas aos 16 anos que se pode começar o cômputo para a aposentadoria por tempo de contribuição. Dessa forma, os juízes anteriores se prenderam a lei, esqueceram da moral e da justiça, não interpretando a lei com o objetivo em que ela foi feita, proteger a criança do trabalho infantil e não o de renegar "benefícios" no caso de seu descumprimento.
Destaca-se o trecho da decisão proferida pelo Ministro Napoleão Filho: "[...]o trabalho da criança e do adolescente deve ser reprimido com energia inflexível, não se admitindo exceção que o justifique; no entanto, uma vez prestado o labor o respectivo tempo deve ser computado, sendo esse cômputo o mínimo que se pode fazer para mitigar o prejuízo sofrido pelo infante, mas isso sem exonerar o empregador das punições legais a que se expõe quem emprega ou explora o trabalho de menores"². Tal decisão, afronta a lei, mas faz sorrir a Justiça. Graças ao protagonismo do STJ foi possível que fosse assim. Contudo, triste saber que os juízes dos tribunais anteriores não pensaram assim e desgastaram muito o sistema jurídico do país e as partes do processo.
Natã da Silva Dias, Direito XXXVIII, noturno, 2° período.
Referências:
¹RAYNAUD, Philippe apud GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas, p. 24.
²(STJ - AgInt no AREsp: 956558 SP 2016/0194543-9, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 02/06/2020, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/06/2020)
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