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segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A vida cotidiana e (a)normal

   O paradigma do sistema capitalista, por natureza, é desumano. Suas bases constituem-se de forma inteligente e fria. Primeiro, porque explora as pessoas tanto fisicamente quanto psicologicamente e, segundo, porque sua exploração é dissimulada e útil, se afirmando e se justificando por recursos midiáticos e recursos que estão vinculados à psique humana que aceita e se submete a tal tipo de ocasião sem nem ao menos refletir o porquê disso. Exemplificarei. Tomemos isso como uma pequena história. 
   Maria, uma mulher simples, mora em São Paulo e trabalha como empregada doméstica integralmente na casa de um empresário rico e influente no meio social da opulência e dos grandes banqueiros/empresários. Ela teve uma vida difícil: escola pública sem infraestrutura e assistencialismo necessário; os pais tinham que trabalhar para que os filhos sobrevivessem e por isso não podiam olhá-los nem educá-los devidamente; o bairro que cresceu era à margem de toda a sociedade, tanto no sentido geográfico quanto no sentido social; Como um todo, as condições em que vivia – saúde, nutrição, saneamento básico, pobreza, fome, orientação, educação, segurança – eram deploráveis e indignas. O mínimo que ela poderia ter para mudar sua vida era o estudo e o conhecimento de qualidade. Na escola aprendeu a obedecer, aprendeu que a diversão só poderia existir no momento do intervalo porque durante a aula deveria ser um sacrifício, ou seja, sua alegria era setorizada. Aprender se tornou chato e maçante. Maria cedeu, e largou a escola. Foi trabalhar.
     Enquanto isso, Jõao, o empresário, nasceu em “berço de ouro”, cresceu em um mundo fácil, em que bastava existir para desfrutar de tanto luxo. Jõao estudou na mais cara escola da cidade de São Paulo. Aprendia em inglês. Fazia esportes e tinha aulas diárias de piano. Estudou administração também na mais cara faculdade da cidade de São Paulo. Herdou empresas de sua família e aos 25 anos já tinha seu apartamento em Alphaville. Morava sozinho e necessitava de alguém para fazer o que nunca fez, nunca aprendeu e nem nunca irá fazer, nem nunca irá aprender: Trabalhos básicos como compras, faxina, limpeza, organização, louça, comida. Jõao necessita, substancialmente, de Maria. E mesmo assim os dois vivem nos polos opostos do sistema.
    Voltando à reflexão, o sistema capitalista nada mais é do que um sistema conservador do status quo dos homens que fazem parte do topo dessa pirâmide. Esses são carregados pela base, que é o “povão”. É o povão que constrói, que recolhe o lixo, que solda os carros, que lava os pratos e que faz o básico e essencial de tudo. Esse “povão” é constantemente sabotado. Eles não sabem do poder que têm. Eles foram sabotados. Eles não são subordinados e explorados por serem burros ou ignorantes. Eles são tudo isso pois lá na escola, onde deveriam ter acesso ao conhecimento, não o tiveram. A educação que os passaram foi a de obedecer, e o que passaram de conteúdo foi superficial. E essas escolas são públicas. Bancadas pelo governo. O governo dos Joãos, dos ricos e privilegiados. Eles sabem que para conservarem sua posição de privilegiados necessitam de uma massa de explorados, e que para estes aceitarem a exploração, devem ser profundamente alienados e condicionados a obedecer, a achar normal, e para que sejam alienados não podem ter educação. A pseudo possibilidade de mobilidade social é só um alento e um combustível para que continuem trabalhando e obedecendo. 
   Além disso, quando liga a televisão, no seu raro momento de descanso, Maria se vê na novela. A empregada boazinha, com sua mesma cor de pele, que trabalha e se subalterniza totalmente, e que no fim da história se dá bem. É feliz. No intervalo da novela, Maria vê diversos comerciais que apetecem e a estimulam a consumir. O comercial é da nova empresa de Jõao. Maria pensa que ainda tem que trabalhar muito para um dia poder comprar seu desejo implantado como necessidade pela publicidade. E esse é o controle e a lavagem cerebral que o massacre midiático e publicitário fazem e que contribui para manter Maria onde está, pois só assim João poderá manter-se onde sempre esteve.



PS: Numa sexta feira, Maria conseguiu folga. Estava cansada e queria se divertir. Quando foi para uma festa, se descarregou. Quando se descarregou, gastou tudo o que podia, consumindo muito. Todo seu trabalho e seu dinheiro ficaram ali, no seu descarrego. Ela, como mais uma estatística, caiu na arapuca. Consumiu e gerou lucro. Mas ela viveu, foi feliz por um momento. Sua alegria, assim como na sua escola, foi setorizada. Na segunda feira, tudo voltará a ser como era antes. Maria voltará a ser uma máquina acéfala que só reproduz a mesma coisa todos os dias. Em uma próxima sexta feira distante (quando tiver dinheiro novamente) Maria voltará a viver, por algumas horas, em alguma festa, consumindo.  

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