René
Descartes, o pai do racionalismo moderno, é conhecido por, além de suas
muitas contribuições nas áreas da física e da matemática, seu método para a
organização do conhecimento, chamado por ele de regras para a orientação do
espírito. A aquisição do verdadeiro conhecimento para Descartes passaria pelo
processo da dúvida, que eliminaria as impressões incertas. Levando essa lógica
ao seu máximo, o pensador francês propôs a dúvida hiperbólica, e, ao questionar
toda a existência o autor chegou à conclusão que ao questionar ele próprio
teria sua existência confirmada: “Cogito ergo sum”
Descartes debate, na terceira parte do
Discurso do método que se aplicada na vida civil em sua integridade a dúvida
hiperbólica poderia ser inconveniente, um indivíduo que aplicasse a dúvida a
todo momento, ao ver, por exemplo uma multidão com guarda-chuvas, de cima, de
forma que não visse as pessoas, não deveria assumir que elas estão ali. O
próprio autor concorda que isso seria disfuncional e propõe a ideia de uma
moral provisória, baseada na moderação: “...para não permanecer irresoluto
em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus juízos, e de
não deixar de viver desde então de o mais felizmente possível, formei para mim
mesmo uma moral provisória (...) segundo as opiniões mais
moderadas e as mais distanciadas do excesso...”
Toda essa introdução do pensamento cartesiano, o relaciona
com uma tirinha de Alexandre Beck, onde um guarda pede a nota fiscal de
bicicletas que estavam na posse de duas crianças, uma negra e uma branca.
Enquanto a criança branca questiona a situação, perguntando a razão de alguém
andar com a nota fiscal de algo que comprou, a criança negra prontamente
entrega sua nota, mostrando que, para ela, aquela situação já havia se tornado
habitual. A reação das duas crianças, e até mesmo a do guarda se referem a “moral
provisória” que cada uma criou para si mesma, baseadas em suas convivências, experiências
e na própria forma como o sistema impõe certos preceitos a cada pessoa. A moral
provisória pode ser entendida dessa forma, como a raiz dos preconceitos na
medida em que ao adotar as opiniões que nos parecem moderadas, estamos, na
verdade, legitimando preconceitos infundados, como a própria ideia da
discriminação racial. Ao não questionarmos o porquê de uma pessoa negra ter de
provar que suas posses não são frutos de roubo e uma pessoa branca não, nos
tornamos perpetuadores do racismo, disfarçado de moral provisória.
Se de um lado no debate epistemológico
da idade moderna se encontrava Descartes, propondo que as verdades se davam no juízo
analítico a priori, do outro lado do debate se encontrava, entre outros o inglês
Francis Bacon propondo que o conhecimento vinha do juízo sintético a posteriori
(Tomando licença cronológica para usar os termos de Kant, visto que este nasceu
no século posterior às mortes de Descartes e Bacon). Considerado o pai do
empirismo, Bacon tem como sua obra prima o Novo Organum, um contraponto ao Órganon
de Aristóteles. Nessa obra de cunho cientificista, Bacon defende que só a
partir das experiências pode se chegar às verdades de fato, propondo inclusive
a ideia de que a mente possui falsos ídolos que na verdade dificultam a busca
pela verdade seriam eles: o ídolo da tribo, caverna, foro e teatro que abrangem
a Generalização, o inferir sem reflexão, a distorção e a imposição, motivadas
respectivamente por cada um dos ídolos.
Na segunda tirinha de
Alexandre Beck os mesmos personagens da primeira planejam apostar uma corrida
até sua amiga, a criança negra, porém desiste, ao ver que perto de sua amiga
está um guarda, este que, é considerado pelo senso comum, ou ídolo da caverna,
um símbolo de segurança é para a criança negra, devido a suas experiências,
justamente o contrário, ela afirma que o ambiente perto dele não é seguro para
ela, levando ao entendimento de que ele é a própria insegurança dela. O próprio
conflito entre as forças de segurança e a população negra é frequentemente
motivado pelo ídolo do foro, ou seja, da linguagem usada pelos homens. A medida
que se popularizam as falas que associam os negros ao crime e que dizem que: ”Bandido
bom é bandido morto” a população negra tende a reagir as forças de segurança,
nas quais veem seus algozes e as forças policiais abusam da violência contra essa
população em contrapartida. Assim, age o ídolo da caverna que coloca cada um
dos seres humanos em uma cova que corrompe a luz da natureza e da verdade. O ciclo
de violência se perpetua na escuridão de luz corrompida que cada um tem por sua verdade absoluta e inquestionável.
Pedro Augusto Ferreira Bisinotto
Direito Noturno
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