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quarta-feira, 27 de março de 2019

A moral provisória e os ídolos como fundamentadores do preconceito e da violência

René Descartes, o pai do racionalismo moderno, é conhecido por, além de suas muitas contribuições nas áreas da física e da matemática, seu método para a organização do conhecimento, chamado por ele de regras para a orientação do espírito. A aquisição do verdadeiro conhecimento para Descartes passaria pelo processo da dúvida, que eliminaria as impressões incertas. Levando essa lógica ao seu máximo, o pensador francês propôs a dúvida hiperbólica, e, ao questionar toda a existência o autor chegou à conclusão que ao questionar ele próprio teria sua existência confirmada: “Cogito ergo sum”
Descartes debate, na terceira parte do Discurso do método que se aplicada na vida civil em sua integridade a dúvida hiperbólica poderia ser inconveniente, um indivíduo que aplicasse a dúvida a todo momento, ao ver, por exemplo uma multidão com guarda-chuvas, de cima, de forma que não visse as pessoas, não deveria assumir que elas estão ali. O próprio autor concorda que isso seria disfuncional e propõe a ideia de uma moral provisória, baseada na moderação: “...para não permanecer irresoluto em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus juízos, e de não deixar de viver desde então de o mais felizmente possível, formei para mim mesmo uma moral provisória (...) segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso...”
Toda essa introdução do pensamento cartesiano, o relaciona com uma tirinha de Alexandre Beck, onde um guarda pede a nota fiscal de bicicletas que estavam na posse de duas crianças, uma negra e uma branca. Enquanto a criança branca questiona a situação, perguntando a razão de alguém andar com a nota fiscal de algo que comprou, a criança negra prontamente entrega sua nota, mostrando que, para ela, aquela situação já havia se tornado habitual. A reação das duas crianças, e até mesmo a do guarda se referem a “moral provisória” que cada uma criou para si mesma, baseadas em suas convivências, experiências e na própria forma como o sistema impõe certos preceitos a cada pessoa. A moral provisória pode ser entendida dessa forma, como a raiz dos preconceitos na medida em que ao adotar as opiniões que nos parecem moderadas, estamos, na verdade, legitimando preconceitos infundados, como a própria ideia da discriminação racial. Ao não questionarmos o porquê de uma pessoa negra ter de provar que suas posses não são frutos de roubo e uma pessoa branca não, nos tornamos perpetuadores do racismo, disfarçado de moral provisória.
Se de um lado no debate epistemológico da idade moderna se encontrava Descartes, propondo que as verdades se davam no juízo analítico a priori, do outro lado do debate se encontrava, entre outros o inglês Francis Bacon propondo que o conhecimento vinha do juízo sintético a posteriori (Tomando licença cronológica para usar os termos de Kant, visto que este nasceu no século posterior às mortes de Descartes e Bacon). Considerado o pai do empirismo, Bacon tem como sua obra prima o Novo Organum, um contraponto ao Órganon de Aristóteles. Nessa obra de cunho cientificista, Bacon defende que só a partir das experiências pode se chegar às verdades de fato, propondo inclusive a ideia de que a mente possui falsos ídolos que na verdade dificultam a busca pela verdade seriam eles: o ídolo da tribo, caverna, foro e teatro que abrangem a Generalização, o inferir sem reflexão, a distorção e a imposição, motivadas respectivamente por cada um dos ídolos.

Na segunda tirinha de Alexandre Beck os mesmos personagens da primeira planejam apostar uma corrida até sua amiga, a criança negra, porém desiste, ao ver que perto de sua amiga está um guarda, este que, é considerado pelo senso comum, ou ídolo da caverna, um símbolo de segurança é para a criança negra, devido a suas experiências, justamente o contrário, ela afirma que o ambiente perto dele não é seguro para ela, levando ao entendimento de que ele é a própria insegurança dela. O próprio conflito entre as forças de segurança e a população negra é frequentemente motivado pelo ídolo do foro, ou seja, da linguagem usada pelos homens. A medida que se popularizam as falas que associam os negros ao crime e que dizem que: ”Bandido bom é bandido morto” a população negra tende a reagir as forças de segurança, nas quais veem seus algozes e as forças policiais abusam da violência contra essa população em contrapartida. Assim, age o ídolo da caverna que coloca cada um dos seres humanos em uma cova que corrompe a luz da natureza e da verdade. O ciclo de violência se perpetua na escuridão de luz corrompida que cada um tem por sua verdade absoluta e inquestionável.

Pedro Augusto Ferreira Bisinotto
Direito Noturno

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