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quarta-feira, 20 de junho de 2018

O poder simbólico sob a perspectiva fática


           No dia 13 de abril de 2012, foi julgada a ADPF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) 54 pelo STF. ADPF essa que foi ajuizada pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde), que detinha como escopo a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico, que até aquele momento era designada como aborto.
            Nesse embate, Luís Roberto Barroso, que representava a CNTS na ação, fez sua sustentação oral, defendendo, assim, a necessidade desta antecipação do parto. Nesse momento, é possível perceber um embate entre os quereres: de um lado, a CNTS, do outro, o plenário. Convém salientar aqui que em julho do mesmo ano foi decretada uma liminar que dava às mulheres o direito de antecipar o parto no caso do nascituro ser anencefálico, entretanto, essa liminar foi cessada pelo plenário três meses depois de decretada.
            A partir do que foi exposto, podemos evocar as ideias presentes na conjuntura do pensamento de Pierre Bourdieu e fazer um exame pormenorizado entre elas e o julgamento da ADPF 54.
            Inicialmente, como foi exposto, houve um embate de interpretações acerca do que é constitucional e do que não é. Nesse embate, é possível ver a necessidade de cada parte ordenar os seus argumentos; forjar as suas armas e afiar sua cognição para fazer uso do poder simbólico, como conceitua Bourdieu: “poder simbólico é esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a esse poder ou mesmo daqueles que o exercem”.
            Nesse embate, ambos os lados fazem uso do direito para dizer o Direito. Ou seja, eles procuram, de forma sólida, analisar a necessidade da parte que eles defendem (no caso do Barroso a CNTS) e interpretá-la de uma forma legal. Com isso, eles buscam legitimidade através da hermenêutica jurídica. Assim, como pode ser observado no julgado, há um choque interpretativo acerca do que é certo e do que é errado; do que é legal e do que é ilegal.
            Contudo, nesse choque, é analisável o “habitus”, explicitado por Bourdieu. Na sociedade, possuímos o “habitus”, que pode ser resumido em: tudo aquilo que orienta nossas ações, e, esse polo norteador é aquilo que trazemos da nossa classe, da nossa criação. Entretanto, quando se trata de uma representação jurídica em um tribunal, os operadores do direito se despem de seus habitus e passam a representar a vontade das partes que estes tentam legitimar. Um exemplo disso foi quando Barroso fez sua sustentação oral: ele poderia não estar representado sua vontade, mas apenas a da CNTS, assim, neste caso, ele colocaria uma “máscara” no seu lado subjetivo, mascarando aquilo que ele realmente pensa sobre.
            Outra forma de poder simbólico que pode ser observada no julgamento: o léxico jurídico. Desde o início do julgado, é visível a disparidade do português falado quotidianamente e o que é usado durante um julgamento. O advogado busca certa complexidade no léxico quando se encontra no ambiente jurídico: ele faz uso do “juridiquês”; dos jargões típicos do direito. E, por incrível que pareça, o uso dessa sintaxe é uma forma de poder simbólico, pois busca a diferenciação; a distinção entre os demais: é uma maneira de acentuar o status. Mesmo que a lei dispunha ao contrário, por prejudicar a objetividade e a clareza do que é dito e escrito (decreto nº 9.094, de 17 de julho de 2017), essa complexidade lexical é usada.
Por fim, vou fazer outro paralelo entre o pensamento de Pierre com o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº54. Bourdieu fala da racionalização do Direito: ele é dito como se fosse um corpo composto de duas partes, uma dessas partes é a impessoalidade e a outra é a universalidade. Dessa forma, o direito é neutro e universal – em tese. Assim, no direito, não deve ocorrer a irredutibilidade dele aos conflitos sociais. Com isso, as partes constituintes do julgamento devem buscar no âmago do querer um respaldo legal (no caso da CNTS, não podem simplesmente dizer que querem que seja daquela forma), e não dizer apenas um discurso acalorado e emotivo.

Com isso, Barroso (representante da CNTS) revestiu a ideia emotiva da CNTS com “folhas jurídicas”, assim, dando legitimidade aos anseios da CNTS. Destarte, o tribunal constitucional fez uma ponderação entre a Moral (presente na consciência) e a ciência (nenhum nascituro sem cérebro conseguiu sobreviver; o anencefálico é um natimorto, o que cai por terra a ideia que ele representa uma vida potencial) dando um veredito (que possui uma eficácia simbólica). E essa ponderação entre a moral e a ciência é conceituada por Bourdieu como “espaço dos possíveis”.

BRUNO ALVES CURTI - DIREITO NOTURNO

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