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quarta-feira, 20 de junho de 2018

O aborto de anencéfalos no campo jurídico


    Pierre Bourdieu em sua obra” O Poder Simbólico”, procura demonstrar como os campos buscam produzir efeito nos atos alheios. Mais especificamente no capítulo VIII intitulado “A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico", ele vai tratar de como o campo jurídico procura orientar as condutas de outrem através de seus recursos específicos, que recebem o nome de capital, acumulados pelos indivíduos para situarem sua posição no campo e estabelecerem suas relações de “dominação” a partir das regras deste mesmo, e não apenas por uma simples demonstração de poder.
    Essa busca por situar-se no campo é o que faz com que o horizonte das relações sociais seja a distinção e o empoderamento para poder exercer sua influência. Assim, os agentes e instituições do Direito entram em disputa pelo “monopólio do direito de dizer o direito”, ou seja, buscam reconhecimento e destaque os agentes jurídicos tentando  fazer com que sua hermenêutica se sobreponha à do outro, o que fica evidente na ADPF/54, quando Ministros de concepções contrárias acerca do assunto referente ao aborto de anencéfalos, como o Relator Marco Aurélio em relação a Cezar Peluso, tentam fazer com que sua visão impere sobre a do outro.
    Diante desse seu objetivo ele vai criticar as visões “rasas” acerca do estudo do direito, procurando evitar o instrumentalismo, ou seja, a ideia de Direito a serviço de uma classe dominante, e o formalismo, que entende um Direito autônomo de influências sociais. Dessa maneira, acaba por criticar os marxistas estruturalistas por resumirem todas as relações aos meios produtivos e à classe dominante assim como critica Kelsen e seus seguidores por reivindicarem autonomia absoluta do pensamento e ação jurídicos, fazendo deles integrantes, respectivamente, das duas vertentes criticadas.
    Ele vai propor que o campo jurídico possui uma lógica duplamente determinada representada por duas duplas:
1.       As relações de força que orientam as lutas de concorrência e determinam a estrutura do Direito, representam aqui o processo de racionalização que conferem uma universalização, ao expor o que de fato é, e uma neutralização, ao utilizar recursos de impessoalidade, na linguagem por exemplo.
2.       Lógica interna das obras jurídicas (Doutrina, Jurisprudência, Constituição e demais normas) que delimitam o espaço dos possíveis, limitado em um extremo pela moral e no outro pela ciência. Tal lógica fica evidente no seguinte trecho do julgado acerca do aborto de anencéfalos: “O único critério a ser utilizado, portanto, na solução da controvérsia ora em exame é aquele que se fundamenta nos textos da Constituição, dos tratados e convenções internacionais e das leis da República e que se revela informado por razões de caráter eminentemente social e de natureza pública”
    Desta forma, todas as decisões judiciárias, assim como a hermenêutica jurídica, já estão pré-definidas dentro dessa lacuna de possibilidades.  Um exemplo dessa situação é que o aborto indiscriminado no Brasil é impossível, já que não se encontra nessa lacuna. No entanto, a interrupção terapêutica em casos de anencefalia pode ser realizada graças ao acórdão do STF que fez uso de criatividade embasada nas balizas jurídicas para chegar a tal possibilidade dentro do espaço dos possíveis.
    Outro ponto reforçado por Bourdier é a ilusão de independência e autonomia do Direito em relação às forças externas, representadas pelas demandas sociais, já que estas se infiltram assumindo um certo caráter jurídico para que possam ser aceitas e interpretadas. Ou seja, não basta que exista uma palavra de ordem, é necessário que revesti-la no universo do Direito. Nesse sentido o seguinte trecho do julgado demonstra como a moral e suas reinvindicações de fato influenciam no Direito, mas que para possuir legitimidade precisam apresentar caráter jurídico: “Para tornarem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas” (folhas 1026 e 1027), ou seja, os argumentos devem ser expostos em termos cuja adesão independa dessa ou daquela crença.”
    O autor traz também o conceito de Violência Simbólica, definido como uma violência que acomete o psicológico e a moral sem fazer uso da força física. Nesse sentido, podemos relacionar o Direito e o julgado em questão tal definição de duas formas. A primeira seria aceitar a condição de que o Direito exerce uma eficácia simbólica, que se apresenta camuflada de formalismo e racionalismo, ao definir o que é a vida e seu início e fim, impondo sua visão ao ordenamento jurídico seguido por todo um país. E a segunda seria, de certa forma, uma demonstração da primeira, já que, caso o acordum tivesse resultado oposto, ou seja, permanecesse a impossibilidade desse aborto, os danos morais e psicológicos decorrentes de uma gravidez com ausência de perspectiva de vida do feto teriam continuidade e consumariam as consequências dessa violência. Dessa forma, fica explícito a força coercitiva que faz do Direito um possuidor de violência simbólica, já que suas decisões, apesar de não acarretarem danos físicos, podem ocasionar efeitos morais e psicológicos, que nesse caso foram amenizados com uma decisão jurídica.
    Portanto, a visão de Bourdier sobre a estruturação e o modo de agir do Direito encontram respaldo no ordenamento brasileiro, que pode ser utilizado como exemplo de diversos conceitos do autor acerca do assunto. Fica evidente como se dá a disputar por poder de influenciar condutas no campo jurídico, que faz uso de racionalidade e neutralidade para firmar suas sentenças. Demonstra, ainda, que uma reinvindicação social só terá legitimidade para ser interpretada dentro do espaço dos possíveis, delimitado pela ciência e pela moral, caso esteja em uma linguagem própria do Direito. E, por fim, revela o poder simbólico de exercer uma violência representada pela coerção, que não atinge a forma física do indivíduo, mas pode atingir o psicológico de acordo com suas decisões. Embora no caso do julgado analisado seu veredito venha a diminuir tais danos, isso não retira do Direito sua violência simbólica, já que este tem autonomia para nomear o certo a ser seguido o que pode gerar, em outras situações, uma perturbação emocional e deontológica, como se daria caso permacesse impedida a interrupção nos casos de gestação anencefálica.

Alice Maria Silva Pires, Direito Noturno, Turma XXXV

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