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quarta-feira, 20 de junho de 2018

O Direito como possível

     O documentário “Uma História Severina”, dirigido por Débora Diniz e Eliane Brum, publicado em 2010, narra a história de Severina, uma mulher humilde do interior de Pernambuco que vive o drama de uma gravidez de anencéfalo. Em 2004, aos quatro meses, a mãe conseguiu antecipar o parto do feto. Porém, no mesmo dia em que foi realizar o aborto, o STF proibiu o procedimento. Desde então, Severina e Rosivaldo, seu marido, enfrentaram entraves até o juiz da cidade conceder uma liminar, autorizando a intervenção cirúrgica.
O aborto de anencéfalos ainda é um assunto delicado, tanto na sociedade brasileira quanto no campo jurídico. As diferentes percepções sobre este assunto derivam de determinados aspectos. Em primeiro plano, há a influência da moral religiosa nas esferas pública e privada. Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu, a religião constitui-se em um sistema simbólico, pois é capaz de exercer um poder estruturante já que é estruturada, ou seja, sustentada por dogmas. Logo, a ideia de interromper uma gravidez, ainda que de um feto anencéfalo, é severamente criticada pelas igrejas. No documentário citado, Severina - que é católica - consultou o padre de sua cidade para conversar sobre sua decisão, demonstrando o poder simbólico exercido pela religião e suas instituições como citou o ministro Marco Aurélio Mello na ação relatada, “ainda temos um plenário em Cristo, mas de há muito houve separação entre Estado e Igreja.”
Outro aspecto de extrema importância, é a neutralização e universalização do Direito. Ainda segundo Bourdieu, a neutralização consiste na impessoalidade no enunciado das normas enquanto a universalização, na busca em exprimir a generalidade e a temporalidade das regras jurídicas. Ainda segundo o sociólogo francês, devido à postura universalizante, inicia-se o processo de racionalização do Direito. Consequentemente, o campo jurídico é tomado pela burocratização. De acordo com Rosivaldo, “foi preciso uma pasta bem grande para guardar todos os papéis” que ele e Severina receberam, demonstrando a enorme quantidade de trâmites enfrentados pela jovem em busca da interrupção terapêutica de sua gravidez, durante um processo tão doloroso e desgastante.
Por fim e não menos relevante, “Uma História Severina” possibilita a discussão sobre a influência do capital simbólico dentro do espaço dos possíveis. Tais conceitos, desenvolvidos por Bourdieu, ilustram a limitação da manifestação da vontade de Severina e de outras mulheres que enfrentam a mesma situação. A escolha de interromper a gravidez quando é diagnosticada a anencefalia não é tarefa simples, mas a decisão deve partir da mulher pois advém de uma série de questões ligadas a fatores subjetivos. A pressão sofrida pela mãe durante uma gestação comum gera diversas dúvidas, em uma gestação problemática este fator é intensificado. De acordo com o ministro Marco Aurélio Mello, "enquanto, numa gestação normal, são nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, com a predominância do amor, em que a alteração estética é suplantada pela alegre expectativa do nascimento da criança; na gestação do feto anencéfalo, no mais das vezes, reinam sentimentos mórbidos, de dor, de angústia, de impotência, de tristeza, de luto, de desespero, dada a certeza do óbito."
Conclui-se, portanto, que Severina representa a situação de muitas outras mulheres que vivenciam essa experiência. A escolha do STF em legalizar o aborto de fetos anencéfalos explicita o papel do magistrado em adaptar as normas a novas realidades, descobrindo possibilidades inéditas. Além disso, a ADPF 54 pode ser considerada como uma decisão de extrema importância para o debate sobre o aborto no Brasil. A questão central trazida pelo documentário “Uma História Severina” e toda a repercussão da ADPF 54 é que a vontade da gestante deve ser levada em consideração, independente do capital simbólico que os teóricos e operadores do Direito possuem e do poder simbólico e moralista das instituições religiosas. Ainda que a universalização e neutralização sejam inerentes à ciência jurídica, o direito de dizer o Direito deve ser assegurado a todos os indivíduos.

Thainá Guimarães - Noturno - Turma XXXV

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