Total de visualizações de página (desde out/2009)

quarta-feira, 20 de junho de 2018


O direito justo e a sua dualidade

É incontrovertível a influência das estruturas sociais exercidas em um povo. Tal fato, evidencia-se, pois, é nítido o reflexo de tais alicerces sociais, por tempo indeterminado, no campo cultural, jurídico e, principalmente, individual de um cidadão. Tendo o Brasil como exemplo, fica claro o quanto a sociedade brasileira ainda está intimamente ligada as suas raízes históricas; valores como o patriarcalismo, conservadorismo e o patrimonialismo ainda estão relativamente presentes em uma sociedade que devido ao seu percurso histórico, já era para encontrar-se liberto dessas macróbias amarras. No decorrer do século XX, diversas mudanças na sociedade, como a valorização da solidariedade social e o advento da Constituição Cidadã, provocaram inúmeras transformações que exigiram do direito e da sociedade uma contínua adaptação, mediante crescente elaboração de leis especiais, as quais resultaram inclusive na elaboração de um novo Código Civil guiado pela Constituição (função social da propriedade, contrato e boa-fé).
No dia 13 de abril de 2012, discutia-se e concluía-se no Brasil, uma das decisões colegiadas (acórdão) de maior significância, já decididas na Corte Suprema: a possibilidade da realização do aborto (acompanhado por profissionais da área de saúde) no caso de fetos diagnosticados com anencefalia, proposta essa feita através da ADPF 54 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da área de saúde, por volta de 2004. Por um placar de 8 votos a favor e 2 contra, foi decidido a procedência da ADPF 54, com a inconstitucionalidade dos artigos 124, 126, 128, incisos I e II do Código Penal, os quais julgam ato tipificado, a interrupção da gravidez. Esta decisão ocorreu devido a diversos fatores, mas é de extrema relevância citar aqueles que contrariaram disposições da nossa Carta Constitucional, em relação à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe.
Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a ciência do direito seguida à risca, a qual tem no próprio direito, seu objeto de estudo, deve evitar o instrumentalismo, assim como o formalismo ao máximo. O instrumentalismo apresenta a ideia do Direito como instrumento a serviço da classe dominante e o formalismo seria a ideia do direito como força autônoma, principalmente em relação ao mundo social. O instrumentalismo assemelha-se a fundamentação do professor Dimitri Dimoulis, em que há três tipos de abordagens a respeito da postura pessoal dos autores sobre o conceito de direito, uma delas é a abordagem crítica, a qual enxerga o direito sob um viés negativo, em que os mais fortes dominam e impõe normas aos mais fracos.  
Com isso, sob a égide de Bourdieu, o direito deve evitar a aproximação com o instrumentalismo e com o formalismo, e é exatamente isso que ocorre em relação ao ato abortivo no Brasil. Dessa forma, caso uma grávida em meio a um círculo de poder e bens elevados for diagnosticada com um feto anencefálico, mesmo sendo ilegal de acordo com o Código Civil, ela irá conseguir realizar a “antecipação terapêutica” do parto, a qual segundo Luís Roberto Barroso, não consubstancia em aborto. No entanto, uma grávida desfavorecida de capitais e bens, dificilmente encontrará um meio de realizar o procedimento de forma segura e assegurada pela lei sem ser penalmente acionada.
Na República Federativa brasileira, aproximadamente, um a cada mil nascimentos, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Chega-se a falar que, a cada três horas, realiza-se o parto de um feto portador de anencefalia. Portanto, é evidente a grande incidência de casos, sendo injusto a condenação de uma mãe a 9 meses de gestação, provavelmente, os mais angustiantes, dolorosos e frustrantes da vida de uma mãe, a qual já sabe que seu filho provavelmente nascerá morto, resultando em violência às vertentes da dignidade humana. É válido citar uma fala de Cármen Lúcia: "O útero é o primeiro berço de todo ser humano. Quando o berço se transforma em pequeno esquife (túmulo) a vida se entorta".
Logo, é evidente o veredicto, produto da “luta simbólica” no campo jurídico, em relação ao direito e o aborto de anencefálicos. É válido citar uma passagem de Bourdieu: “entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das ‘regras possíveis’, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa”

Pedro Henrique Kishi, turma XXXV, noturno.

Nenhum comentário:

Postar um comentário