O direito justo e a sua dualidade
É incontrovertível
a influência das estruturas sociais exercidas em um povo. Tal fato, evidencia-se,
pois, é nítido o reflexo de tais alicerces sociais, por tempo indeterminado, no
campo cultural, jurídico e, principalmente, individual de um cidadão. Tendo o
Brasil como exemplo, fica claro o quanto a sociedade brasileira ainda está
intimamente ligada as suas raízes históricas; valores como o patriarcalismo, conservadorismo
e o patrimonialismo ainda estão relativamente presentes em uma sociedade que
devido ao seu percurso histórico, já era para encontrar-se liberto dessas macróbias
amarras. No decorrer do século XX, diversas mudanças na sociedade, como a
valorização da solidariedade social e o advento da Constituição Cidadã, provocaram inúmeras transformações que
exigiram do direito e da sociedade uma contínua adaptação, mediante crescente
elaboração de leis especiais, as quais resultaram inclusive na elaboração de um
novo Código Civil guiado pela Constituição (função social da propriedade,
contrato e boa-fé).
No dia 13 de
abril de 2012, discutia-se e concluía-se no Brasil, uma das decisões
colegiadas (acórdão) de maior significância, já decididas na Corte Suprema: a
possibilidade da realização do aborto (acompanhado por profissionais da área de
saúde) no caso de fetos diagnosticados com anencefalia, proposta essa feita
através da ADPF 54 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da área de
saúde, por volta de 2004. Por um placar de 8 votos a favor e 2 contra, foi
decidido a procedência da ADPF 54, com a inconstitucionalidade dos artigos 124,
126, 128, incisos I e II do Código Penal, os quais julgam ato tipificado,
a interrupção da gravidez. Esta decisão ocorreu devido a diversos fatores, mas
é de extrema relevância citar aqueles que contrariaram disposições da nossa
Carta Constitucional, em relação à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à
saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe.
Segundo o sociólogo francês Pierre
Bourdieu, a ciência do direito seguida à risca, a qual tem no próprio direito,
seu objeto de estudo, deve evitar o instrumentalismo, assim como o formalismo
ao máximo. O instrumentalismo apresenta a ideia do Direito como instrumento a
serviço da classe dominante e o formalismo seria a ideia do direito como força
autônoma, principalmente em relação ao mundo social. O instrumentalismo
assemelha-se a fundamentação do professor Dimitri Dimoulis, em que há três
tipos de abordagens a respeito da postura pessoal dos autores sobre o conceito
de direito, uma delas é a abordagem crítica, a qual enxerga o direito sob um
viés negativo, em que os mais fortes dominam e impõe normas aos mais fracos.
Com isso, sob a égide de Bourdieu, o
direito deve evitar a aproximação com o instrumentalismo e com o formalismo, e
é exatamente isso que ocorre em relação ao ato abortivo no Brasil. Dessa forma,
caso uma grávida em meio a um círculo de poder e bens elevados for diagnosticada
com um feto anencefálico, mesmo sendo ilegal de acordo com o Código Civil, ela
irá conseguir realizar a “antecipação terapêutica” do parto, a qual segundo
Luís Roberto Barroso, não consubstancia em aborto. No entanto, uma grávida
desfavorecida de capitais e bens, dificilmente encontrará um meio de realizar o
procedimento de forma segura e assegurada pela lei sem ser penalmente acionada.
Na República Federativa brasileira,
aproximadamente, um a cada mil nascimentos, segundo dados da Organização Mundial
de Saúde. Chega-se a falar que, a cada três horas, realiza-se o parto de um feto
portador de anencefalia. Portanto, é evidente a grande incidência de casos, sendo
injusto a condenação de uma mãe a 9 meses de gestação, provavelmente, os mais
angustiantes, dolorosos e frustrantes da vida de uma mãe, a qual já sabe que
seu filho provavelmente nascerá morto, resultando em violência às
vertentes da dignidade humana. É válido citar uma fala de Cármen Lúcia: "O útero é o primeiro berço de todo ser humano. Quando o berço se transforma em pequeno esquife (túmulo) a vida se entorta".
Logo, é evidente o veredicto, produto da “luta
simbólica” no campo jurídico, em relação ao direito e o aborto de anencefálicos.
É válido citar uma passagem de Bourdieu: “entre profissionais dotados de
competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora
de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração
das ‘regras possíveis’, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas
simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa”.
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