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“Queriam que ela fosse do lar, mas ela era do ler, com essa liberdade, ela era de onde quisesse ser.” Allê Barbosa |
A decisão histórica do STF no ano de 2012, ao permitir a realização do aborto de anencéfalos, expressa, conforme elucidou o sociólogo Pierre Bordieu, a atuação do direito como instrumento de dominação indireta, exercendo seu poder simbólico conforme o “espaço dos possíveis”. Assim, a corte, a partir de uma hermenêutica racional, legitimou sua decisão, atendendo as dinâmicas engendradas pela sociedade.
O julgamento do aborto de
anencéfalos, pelo STF, partiu da protocolação da ADPF 54 pelo CNTS( Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde) em 2004. Após a realização de debates
públicos, dos quais participaram diversos setores da sociedade civil, o Supremo
proferiu sua decisão favorável ao CNTS. O relator do caso, ministro Marco
Aurélio, demonstrou, em seu voto, a emblemática ideia de Bordieu de que não se
pode possuir o direito de dizer o direito, isto é, os agentes jurídicos não
devem possuir autonomia das vontades, portanto, suas decisões devem ser baseadas
em um limite de atuação, o qual foge à opinião, aos interesses individuais e a
parcialidade. Dessa forma, o referido ministro analisa o caso com base nos
preceitos fundamentais da constituição, como o direito à saúde, à vida e a dignidade
da pessoa humana.
A decisão representa um
avanço na consolidação dos direitos da mulher, conferindo-lhe o poder decisório
nos casos em que gestar um feto anencéfalo. Nesse sentido, Marco Aurélio
evidencia o caráter não absoluto do direito à vida, já que a anencefalia
pressupõe a morte e a não existência de vida humana, sendo assim, a dignidade
da mulher, bem como o direito a sua vida, sobrepõe-se a ideia abstrata de existência
vital do anencéfalo. Atrelado a isso, a impessoalidade presente em seu voto
expressa a racionalização do direito, citado por Bordieu, a qual lhe confere o
poder simbólico de proferir as decisões, a partir do acúmulo de capitais
necessários para exercê-las.
Vale ressaltar o caráter
universal da decisão, retomando a temática de Bordieu em seu texto “O poder
simbólico”, já que o STF enuncia a certeza do que é de fato e não o que deve
ser (p. 215). Dessa forma, para o Supremo, é fato que o direito penal, como bem
disse o advogado do CNTS Luiz Roberto Barroso, não criminaliza o aborto nesse
caso, visto que o feto anencéfalo não nasce com vida, ou seja, não há crime. Sendo
assim, o aborto de anencéfalos, foge do espaço dos possíveis do direito penal,
devendo, portanto, ser legalizado, à medida, que abarca o espaço dos possíveis
do direito constitucional, pois, como foi citado a cima, os princípios fundamentais
da constituição devem ser assegurados à mulher.
Em suma, utilizar-se do
poder simbólico do Estado para punir a prática abortiva de fetos anencefálicos,
escapa à racionalização da hermenêutica jurídica proposta por Bordieu. Além disso,
a situação da mulher grávida de um anencéfalo em relação à outra grávida, mas
de um feto plenamente saudável, causa uma violência simbólica na primeira,
visto que ela observa a situação alheia e vive, ao longo dos 9 meses, em
sofrimento por não poder organizar a vida de seu filho como a segunda mulher.
A decisão reitera o
protagonismo feminino intrínseco ao mundo contemporâneo, valorizando caráter laico
do Estado defendido pelo ministro Marco Aurélio. A criação de uma nova
possibilidade pelo STF, apesar de expressar a deficiência legislativa e seu
ativismo judicial, representa a existência de mudanças, ainda que permeadas
pelo “espaço dos possíveis” de Bordieu. Assim, o direito floresce como uma
crisálida que se torna borboleta, em oposição ao feto anencéfalo, como citado
pelo ministro Ayres Brito, o qual representa o parto de um caixão e a dor
feminina, subjulgada pela dominação social leviana dos que pretendem dizer o
direito.
Victor Vinícius de Moraes Rosa - 1º ano (Noturno)
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