Logo no início da obra do professor e sociólogo Pierre Bourdieu, intitulada de “O Poder
Simbólico”, o saudoso pensador francês define tal poder como aquele capaz de
constituir o dado pelo enunciado, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão de mundo e portanto, o mundo; poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isso significa que o poder
simbólico não reside nos sistemas
simbólicos em forma de força ilocucionária (J. Austin) mas que se define
numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os
que lhe estão sujeito, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que
se produz e se reproduz a crença. (p. 14-15)
De acordo com o pensamento de Bourdieu, o Direito diz sem
dizer quem, de fato, está dizendo – é a voz da razão. Mas razão de quem? Que
espécie de razão seria essa? Atrelada a quais circunstâncias, quais motivos,
quais valores? Diferente de Foucault que afirmava que o direito diz muito bem a
que veio e para quem veio, Bourdieu declara que esta equação não se dá de forma
tão simples e nua assim. A violência produzida pelo Direito seria uma violência
sutil, uma violência travestida, simbólica. O Direito se veste de razão para
obter legitimidade e as pessoas do senso comum aceitam todas as suas imposições
como algo normal e até veem-no, principalmente no âmbito do poder judiciário,
como um pai protetor (em alusão ao pensamento de Maus e o judiciário como
Superego da sociedade).
É dentro de um engenhoso sistema, formado por Doutrina,
Jurisprudência e Constituição que se dão as Relações internas, segundo o
professor francês; e é exatamente dentro desse campo que se encontra o “Espaço dos
Possíveis”, onde tudo o que se deseja tutelar, requerer, demandar, etc., fruindo-se da máquina do direito, deverá ser processado utilizando-se destes
mecanismos, que trazem intrincados a eles uma dicotomia entre a lógica positiva
da ciência e a lógica normativa da moral. E essa relação dicotômica entre ciência
e moral foi alvo de intensa disputa jurídica na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental de número 54, onde estava em pauta o direito ou não de se
realizar a interrupção da gravidez para os casos de anencefalia.
Depois de apresentadas inúmeras versões, tanto de
especialistas da área da saúde, como de pesquisadores do campo acadêmico, assim
como também a opinião das principais interessadas em obtenção da tutela
jurídica – as mães, o ministro e relator Dr. Marco Aurélio (amparado nas
palavras do Dr. Talvane Marins, psiquiatra forense e livre-docente da UFRJ, o qual
alegou que, se tirar da mulher o direito de decisão em casos como esse, pode-se
desenvolver na mesma um quadro de grave depressão, como também a possibilidade
real de suicídio, haja vista a supressão de sua autonomia) decidiu pela procedência
de se arguir como inconstitucional os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do
código penal brasileiro para casos de aborto de anencéfalos, o que a meu ver,
representou, como nas palavras de uma das mães envolvidas em todo o imbróglio,
a tirada de um peso muito grande das costas delas.
Evandro Oliveira Silva – Direito noturno
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