A
ADPF 54, que trata sobre aborto de anencéfalos, se analisada de uma perspectiva
sociológica, vai muito além de uma mera decisão jurídica. Vemos ali um embate
de forças antagônicas pelo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chama de “direito
de dizer o direito”. Vemos um choque não apenas de opiniões, mas de duas
grandes ciências disputando quem pode definir o que é vida: a medicina e o
direito.
Segundo
a doutrina de Pamplona Filho e Gagliano, o nascituro, embora não possua
personalidade jurídica, possui direitos personalíssimos (o que inclui o direito
à vida). Este direito, porém, pode ser relativizado em certos casos (como
quando a gestação oferecer risco de vida à gestante). Embora haja muito debate
sobre a legalização do aborto num contexto mais amplo ou das teorias natalista
vs. concepcionista, a doutrina é praticamente pacífica no que tange tal relativização.
Somos
então obrigados a analisar o voto do então ministro Cezar Peluso, que argumentou
que o feto anencéfalo é considerado ser vivo, e por isso a interrupção da gestação
caracterizaria um aborto. Curiosamente, este foi o único voto cuja argumentação
foi desprovida de qualquer embasamento médico-biológico, onde o magistrado
simplesmente preferiu usar definições antiquadas sobre o que é vida do que as
conclusões de uma ciência cujo um dos ramos específicos é justamente estudar o
assunto.
Bourdieu
critica justamente esse instrumentalismo presente no direito, uma vez que o
magistrado está a decidir uma questão se pautando e argumentando apenas baseado
numa norma, sem refletir sobre as consequências sociais de sua decisão. Vale
destacar que, além de a medicina ser favorável, o aborto de anencéfalos se
encontra totalmente dentro do chamado “espaço dos possíveis” uma vez que também
há um grande respaldo moral na decisão.
Talvez
agora fique mais simples responder à pergunta sobre “quem pode definir o que é
a vida: a medicina ou o direito?”. Não é concebível que uma ciência que cujo
maior instrumento de estudo seja a norma defina algo ignorando toda e qualquer
definição dada por uma ciência que se especializou naquele assunto. Parafraseando
Hayek, ao constatar como a ciência econômica necessita da interdisciplinaridade
de seus estudiosos, “um jurista que conhece apenas o direito não é um bom jurista”.
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