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quarta-feira, 20 de junho de 2018

O embate das ciências


A ADPF 54, que trata sobre aborto de anencéfalos, se analisada de uma perspectiva sociológica, vai muito além de uma mera decisão jurídica. Vemos ali um embate de forças antagônicas pelo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chama de “direito de dizer o direito”. Vemos um choque não apenas de opiniões, mas de duas grandes ciências disputando quem pode definir o que é vida: a medicina e o direito.
Segundo a doutrina de Pamplona Filho e Gagliano, o nascituro, embora não possua personalidade jurídica, possui direitos personalíssimos (o que inclui o direito à vida). Este direito, porém, pode ser relativizado em certos casos (como quando a gestação oferecer risco de vida à gestante). Embora haja muito debate sobre a legalização do aborto num contexto mais amplo ou das teorias natalista vs. concepcionista, a doutrina é praticamente pacífica no que tange tal relativização.
Somos então obrigados a analisar o voto do então ministro Cezar Peluso, que argumentou que o feto anencéfalo é considerado ser vivo, e por isso a interrupção da gestação caracterizaria um aborto. Curiosamente, este foi o único voto cuja argumentação foi desprovida de qualquer embasamento médico-biológico, onde o magistrado simplesmente preferiu usar definições antiquadas sobre o que é vida do que as conclusões de uma ciência cujo um dos ramos específicos é justamente estudar o assunto.
Bourdieu critica justamente esse instrumentalismo presente no direito, uma vez que o magistrado está a decidir uma questão se pautando e argumentando apenas baseado numa norma, sem refletir sobre as consequências sociais de sua decisão. Vale destacar que, além de a medicina ser favorável, o aborto de anencéfalos se encontra totalmente dentro do chamado “espaço dos possíveis” uma vez que também há um grande respaldo moral na decisão.
Talvez agora fique mais simples responder à pergunta sobre “quem pode definir o que é a vida: a medicina ou o direito?”. Não é concebível que uma ciência que cujo maior instrumento de estudo seja a norma defina algo ignorando toda e qualquer definição dada por uma ciência que se especializou naquele assunto. Parafraseando Hayek, ao constatar como a ciência econômica necessita da interdisciplinaridade de seus estudiosos, “um jurista que conhece apenas o direito não é um bom jurista”.

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