A
ideia de crime sustenta - se em três pilares primordiais, em sua tipicidade,
ilicitude e culpabilidade. Dessa forma, para que qualquer conduta seja
configurada como crime é necessário que essa seja analisada levando -
se tais fatores em conta. É, nesse contexto, que se insere a ação de
descumprimento de preceito fundamental ( ADPF) nº.54, em que se discute a
descriminalização em casos de "interrupção
terapêutica da gestação" de feto anencéfalo. Uma vez que , no entendimento
do Supremo Tribunal Federal (STF), o aborto em questão não configuraria crime,
dado que ocorreria em um estado de necessidade da gestante (
comprometendo assim sua ilicitude) e , posto que o feto anencéfalo não possui
expectativa de vida extrauterina, não haveria, portanto, bem jurídico a
ser tutelado pelo código penal ( ferindo, assim, a própria tipicidade da
conduta). O caso em questão exemplifica, nesse prisma, a importância de
hermenêutica jurídica para a atualização da norma indo, portanto, em
consonância com os pensamentos apresentados por Pierre Bourdieu em sua
obra " O Poder Simbólico".
Entre
o instrumentalismo e o formalismo, esse é o espaço que constitui campo jurídico
para o autor. Nessa moldura, a ADPF em questão figura como exemplo perfeito para
demonstrar a tese proposta.
A
descriminalização do aborto , em uma sociedade majoritariamente cristã,
representa uma atitude contra hegemônica por parte do STF. A forte influência
da moral religiosa em nossa sociedade fez com que o relator Marco Aurélio Mello
tivesse que salientar em seu voto o principio da laicidade previsto em nossa
Constituição, segundo ele :
“ {...} as garantias do Estado
secular e da liberdade religiosa{...} impor postura de distanciamento quanto à
religião, impedem que o Estado endosse concepções morais religiosas, vindo a
coagir, ainda que indiretamente, os cidadãos a observá-las.
(Mello. Marco Aurélio. p.45)
A
existência da ADPF por si só coloca em cheque a suposta " independência
do Direito em relação as forças externas”, criticada pelo
autor (p. 212-213),posto que a motivação da discussão é dada por razão diversa
a matéria jurídica. A evolução histórica, a luta social ( principalmente do
movimento feminista), o avanço da medicina, dentre outros fatores, engendram o
debate levantado pelo STF a respeito do assunto. Demonstrando, assim que o
formalismo do Direito só existem enquanto seus operadores utilizam – se da
eficácia simbólica, crítica, para legitimar seus discursos. O relator demonstra
isso ao elencar os motivos dos quais julga tornar a discussão válida e
necessária, uma vez que os transveste como se a necessidade do debate surgisse
apenas por conta de necessidade jurídica:
“{...} os juízes e tribunais de justiça formalizaram cerca de
três mil autorizações para a interrupção gestacional em razão da
incompatibilidade do feto com a vida extrauterina, o que demonstra a
necessidade de pronunciamento por parte deste Tribunal.”
(Mello. Marco Aurélio. p.31)
Dessa forma, a ADPF
demonstra muito bem oque constitui o “espaço dos possíveis” apresentado por
Bourdieu, uma vez que demonstra os
limites da hermenêutica jurídica como resultado desse espaço. Segundo o autor “
{...} no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de
apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial”
(p.213), dessa forma, os operadores do Direito devem fazer uso da linguagem a
fim de atribuir – lhe neutralidade e universalidade para que consigam vencer a “hierarquia
do campo” e garantir a legitimidade de suas falas. O voto da ministra Cármen
Lúcia (julgado, p.64) evidencia isso muito bem: ‘O embrião é (...) ser humano, ser vivo, obviamente (...)
Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que
caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana”. Nota – se que ela não
justifica seu voto em crenças pessoais ou na moral , mas o faz pautada no
próprio ordenamento jurídico, respeitando, portanto, o “ espaço dos possíveis”.
Ou seja, utilizar –se da força simbólica significa lastrear a linguagem nos
princípios do mesmo direito que se pretende alterar.
Os princípios, dessa maneira,
constituem parte importantíssima para a manutenção do direito como sistema
funcional, dado que é sua abrangência que impede o enrijecimento da matéria (
posto que evita o positivismo extremado) e assegura que essa sempre se
fundamente na realidade. Nesse enredo, é muito importante a contínua reinterpretação
da norma sem a necessidade de se alterar o texto constitucional , a fim de
garantir a segurança jurídica das pessoas enquanto também se assegura sua
melhor aplicabilidade.
A despeito disso, muito embora a
descriminalização em casos de "interrupção terapêutica da gestação" de feto anencéfalo
represente uma vitória pontual, pode – se depreender que o direito não é só um
instrumento de manutenção do status quo , mas pode ser também peça fundamental
nas lutas sociais que tentam combater essa mesma estrutural social defendida
pelo direito.
Beatriz Yumi Picone Takahashi - XXXV, Noturno
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