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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Racismo Estrutural e Dominação: Quando a Regra Exclui

“A gente vai te chamar, qualquer coisa.”

Foi assim que terminou minha terceira entrevista naquele mês. Era uma vaga para analista de dados numa startup em crescimento. Ambiente descontraído, gente jovem, laptops com adesivos de diversidade colados na tampa. Antes da conversa, me senti confortável. Quase em casa.

Mas durante a entrevista, percebi um olhar enviesado do recrutador quando mencionei o bairro onde cresci. “Zona Leste? Legal.” Sorriu. Mas foi aquele sorriso que não sabe disfarçar surpresa. Eu já conhecia.

 Silvio Almeida nos alerta que o racismo estrutural não age como uma exceção — ele é a regra. Não precisa de palavras ofensivas nem de gestos escancarados. Ele se manifesta quando alguém como eu, um homem negro, entra em um espaço corporativo e carrega consigo o peso de provar o tempo todo que pertence àquele lugar.

Na semana seguinte, descobri por uma amiga que a vaga foi preenchida por um rapaz branco, com formação semelhante à minha, mas sem nenhuma experiência prática. O comentário informal que ela ouviu na equipe de RH foi: “ele tem mais o perfil da empresa”.

Max Weber diria que toda dominação precisa de uma justificativa — uma forma de tornar o poder legítimo. No ambiente empresarial, essa dominação é geralmente do tipo legal-racional: regras, processos seletivos, entrevistas. Mas, como mostra Almeida, essas “regras neutras” são atravessadas por padrões históricos que excluem certos corpos e trajetórias.

A ideia de "perfil" virou um filtro silencioso. É uma palavra bonita para descrever um padrão que ninguém ousa escrever, mas todos reconhecem, todos nós sabemos qual é: alguém que pareça confiável, que fale “bem”, que tenha “boa energia”. E quase sempre, esse alguém não sou eu.

No fundo, o problema não é só a escolha de um candidato. É o que se entende, socialmente, como escolha natural. Quem pode ocupar o espaço da inteligência, da criatividade, da liderança. E quem parece estar sempre “fora do perfil”.

A dominação moderna não precisa ser imposta pela força. Ela é mais sutil — vive na expectativa do outro, na dúvida que atravessa meu currículo, na expressão facial quando eu digo meu nome completo.

Naquele dia, saí do prédio com a certeza de que minha formação não estava em questão. O que estava em jogo era minha presença. E o sistema já tinha decidido que ela destoava demais da paisagem.

Duas semanas depois da entrevista, participei de um seminário na universidade onde me formei. Fui convidado para falar sobre inclusão no mercado de trabalho. Antes de mim, subiu ao palco uma professora branca, pesquisadora da área de diversidade. Ela citou dados importantes, falou com segurança e arrancou aplausos.

Quando chegou minha vez, notei o clima mudar.

As primeiras fileiras se ajeitaram na cadeira. Um rapaz franzino, de óculos, cochichou com a colega: “ele é egresso da instituição?” Fiz de conta que não ouvi. Apresentei meus dados, falei sobre os processos seletivos enviesados, mencionei o próprio Silvio Almeida. Fui interrompido duas vezes por perguntas que pareciam testes de legitimidade, não de curiosidade.

A dominação, como explica Weber, não se sustenta apenas pela coerção. Ela se apoia no reconhecimento da autoridade — e essa autoridade não é concedida igualmente a todos. No espaço acadêmico, mesmo quem domina o conteúdo pode ser tratado como intruso se seu corpo não corresponde ao imaginário do “especialista”.

Depois da palestra, uma professora me chamou no canto. Disse que “adorou minha fala”, mas que talvez eu devesse “tomar cuidado com um certo tom crítico demais”. Agradeci com um sorriso educado. Já aprendi que dizer certas verdades exige um cuidado quase coreográfico.

Silvio Almeida nos ajuda a entender: o racismo estrutural é também epistêmico — ele age sobre quem tem direito de dizer, de ensinar, de interpretar o mundo. É por isso que mesmo quando falamos com base em dados e teoria, nosso saber precisa antes ser autorizado. E essa autorização é mediada por raça, classe, e origem social.

Voltei para casa com a sensação de que estava sempre sendo avaliado em uma escala invisível. Uma escala que não mede competência, mas compatibilidade com um padrão que nunca me incluiu.


E então lembrei da frase que ouvi no processo seletivo: "A gente vai te chamar, qualquer coisa."


Ela resume bem. Não é um não. Também não é um sim. É uma espera sem fim, onde a porta nunca se fecha de vez — mas também nunca se abre totalmente.



EVELLY ALONSO LOPES - 1 NOTURNO

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