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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Arquiteturas da Dominação: Quando a Autoridade Veste o Silêncio do Racismo

    No capítulo “Raça e racismo”, Silvio Almeida apresenta o racismo como estrutura social permanente que tece, regula e legitima as relações de poder no Brasil. Seu ponto de partida é a ideia de que o racismo não reside apenas em atitudes individuais, mas se manifesta sobretudo em “instituições” – direito, economia, Estado, mídia, escola – que, sob aparência de neutralidade, fabricam hierarquias raciais e as fazem funcionar como algo “natural”. Essa leitura dialoga diretamente com o que Max Weber denomina “dominação legítima” : o poder que só se mantém quando é percebido como justificável pelos dominados. Ao articular ambos os autores, fica evidente como as diferentes formas de autoridade weberianas servem de alicerce para a reprodução do racismo estrutural descrito por Almeida.

    Weber distingue três tipos ideais de autoridade: “tradicional”, “carismática” e “legal-racional”. No Brasil, o legado escravista e patriarcal conferiu longa vida à autoridade tradicional, sustentada por costumes, valores familiares e hierarquias de sangue. Essa matriz cultural impregna até hoje práticas como a naturalização do trabalho doméstico negro, a leniência com a violência policial nas periferias ou a resistência a políticas de ação afirmativa em universidades. Quando Almeida demonstra que a cor da pele continua a determinar oportunidades de emprego, renda e mobilidade social, ele está evidenciando a persistência desses mecanismos tradicionais de dominação que, longe de desaparecerem, foram absorvidos pelo Estado moderno.

    A autoridade “legal-racional”, por sua vez, é o pilar da burocracia contemporânea que Weber vê como marca das sociedades capitalistas avançadas. Nela, há regras abstratas que supostamente tratam todos de forma igual. Almeida mostra, porém, que essa universalidade formal pode mascarar discriminações materiais: leis penais “neutras” punem de forma desproporcional corpos negros; diretrizes de “meritocracia” no mercado de trabalho ignoram desigualdades históricas; critérios de crédito bancário se valem de algoritmos que reproduzem vieses raciais. A legalidade, portanto, converte-se em instrumento de perpetuação do racismo ao conferir legitimidade burocrática a práticas excludentes. Na linguagem weberiana, o Estado moderno administra a violência legítima, e, enquanto os procedimentos forem tecnicamente corretos, seu exercício permanece incontestado. O que Almeida acrescenta é que a racialidade torna-se variável silenciosa desses procedimentos, produzindo o que ele chama de “normalização da desigualdade”.

    Já a autoridade “carismática” – fruto da devoção a qualidades pessoais extraordinárias – ajuda a compreender tanto rupturas quanto continuidades. Lideranças negras mobilizam carisma para questionar estruturas racistas, mas figuras políticas ou midiáticas também podem capitalizar medos raciais e reativar preconceitos sob aura de autenticidade. O carisma, portanto, serve de ponte entre tradição e legalidade, ora reafirmando, ora contestando o racismo institucional.

    Essa síntese revela que, para Almeida, o racismo é “estrutural” precisamente porque se enraíza nos diferentes modos de autoridade que Weber descreve. O sistema jurídico-burocrático (legal-racional) lhe confere legitimidade; a memória colonial (tradicional) lhe dá profundidade histórica; e lideranças simbólicas (carismáticas) lhe asseguram plasticidade cultural. Instituições não são meros prédios ou procedimentos: são “formas de vida” que qualificam certas existências como dignas e outras como descartáveis. Se as autoridades definem quem tem direito à terra, ao crédito, à proteção policial ou à narrativa histórica, então elas também definem, concreta e simbolicamente, quem é pleno cidadão e quem permanece no limbo da sub-cidadania racial.


Lívia Pocobello, 1º ano - Direito (Matutitno)

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