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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Na sociedade são diversas as formas de dominação, no sentido de imposição de vontade unilateral. Algumas teorias divergem, principalmente no que tange à aceitação/percepção pelo dominado de sua condição. Nesse sentido, discute-se sobre a utilidade do Direito na instrumentalização dessa dominação e seu caráter implícito como sugere a teoria do Poder Simbólico de Bourdieu.
No Egito da antiguidade, os escribas eram, em determinadas épocas não muito específicas, a casta mais poderosa da sociedade. Isso porque tinham a habilidade de ler e escrever, restrita à maioria da população e às vezes até mesmo ao faraó. O poder de dominação deles não pressupunha o uso da força e, pelo que se pode deduzir, não contavam com a consciência por parte do dominado a respeito de seu uso: era um poder natural, implícito e contra o qual não haveria por que resistir. Paralelo interessante é possível de ser feito quanto aos operadores do direito.
O direito, além do caráter inacessível decorrente de sua complexidade e dos forçados jargões, tem o fator de carregar mandamentos normativos. As leis são feitas para ser seguidas, e contra elas não há resistência consistente. Isso por que ao nascermos, a estrutura republicana já é posta, e aceitá-las é natural.
Inicialmente, vale ressaltar que, embora o Legislativo crie as leis, cabe ao Judiciário aplicá-la. É portanto nesse órgão que vigora o foco do uso do Direito como forma de Poder. A situação torna-se mais notável quando consideramos o fenômeno do neoconstitucionalismo, que reconhece a norma como composta por regra e princípio, e o neoprocessualismo, que com o CPC de 2015 passou a admitir a força dos precedentes, noção posteriormente transbordada ao processo penal. Dessa forma, o Juiz torna-se de fato o porta-voz do Direito, mas muitas vezes não pautado na letra fria da lei, a consequência é o ativismo judicial.
Ainda na teoria de Bourdieu, ganha relevo sua concepção sobre o habitus, pela qual haveria uma estrutura social uniforme que ganha corpo com o acúmulo de experiências passadas e mantém o status quo. A situação dirige o indivíduo inserido, de forma que este passa a aceitar as regras, instituições, valores, etc. inconscientemente. A estruturação do habitus pode ter diversas fontes, inclusive o Direito.
A instrumentalização do Direito como forma de consolidar o poder simbólico reflete a judicialização da política, fenômeno jurídico que implica o direcionamento da política conforme as orientações do Direito, principalmente quando aplicado no caso concreto. Sua efetivação é visível após análise de relevantes julgados de tribunais superiores, que afetaram o status quo, normalizando ou reprovando determinadas condutas que até mesmo extrapolam o dever funcional de aplicar o direito.
Tendo como exemplo a ADPF 54, na qual foi descriminalizado o aborto quando da deficiência no feto que torne inviável sua vida, entre outros fatores, muitas discussões foram promovidas até a decisão. Notável foi a participação de diversos setores sociais, de variados ramos do saber na construção do quórum. Ocorre que é questionável ser o Judiciário o terreno fértil para consolidar o entendimento a respeito do que seria a vida ou a morte, por exemplo.
A inapropriação do uso do Direito para recepcionar esses debates começa quando o já mencionado inacessível saber jurídico torna-se indispensável. Basta notar as densas bibliografias nas quais pautaram-se os ministros na ADPF 54, completamente alheias à realidade de maioria qualificada da população. Como pode esses assuntos de tamanha relevância terem que acessar uma bolha da elite intelectual para serem discutidos efetivamente, quando muitas vezes tal elite sequer é afetada pelos problemas em questão? Obviamente uma condição de dominação silenciosa e imperceptível.
    Nota-se ainda que o Judiciário é a única função do Estado para a qual o ingresso não pressupõe aprovação popular, tornando clara a ausência de representatividade de seus membros. Daí o agravante de se ocuparem proativamente de questões políticas, mesmo que envolvam a suposta aplicação da justiça. Por essa ausência de legitimidade e a força impositiva das decisões, inegável é o risco presente nesse modelo.
    Em síntese, o poder pode ser exercido com base em estrutura já consolidada na sociedade, de forma que torna-se imperceptível sua imposição. O judiciário tem sido forte agente no uso do direito para estabelecer aquilo que a sociedade deve ou não aceitar, isso de forma arbitrária, já que extrapolam os limites da letra fria da lei, e inacessível a boa parte da população. O poder simbólico aplicado é evidente, assim como o habitus presente e mantido por nossas instituições republicanas.

Gabriel Nagy Nascimento            3º ano Direito Noturno

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