O
Supremo Tribunal Federal brasileiro, ao recepcionar – em sessão
plenária – arguições, tal como a de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 54, assume a incumbência de resguardar as premissas
constitucionais ali presentes, realizando, teoricamente, o devido
controle de constitucionalidade requerido. O que se resulta desse
processo – e é imanente à própria solicitação, no entanto,
transpõe as meras barreiras legais que circundam o exercício
judiciário. A atividade jurídica, principalmente no que se vincula
às decisões provenientes da magistratura, abarca, de acordo com a
óptica sociológica bourdieusiana, um amplo espectro simbólico e
conflituoso, envolvido por práticas e nuances reiteradas, submetidas
à determinada disposição classista.
Nesse
ínterim, o julgado referente à interrupção terapêutica da
gravidez de fetos anencéfalos revela, à luz da obra “Poder
Simbólico” (P. Bourdieu), as dimensões sociais e filosóficas que
se ocultam às sombras do Código Penal brasileiro e da Constituição
Federal, estabelecendo-se, portanto, uma interconexão normativa com
as decisões deferidas pelas diversas instâncias judiciais. Isto
posto, a permanência da criminalização do cessar gestacional, em
casos de comprovada anencefalia do feto, até o ano de 2012, expõe a
negligência dos tribunais brasileiros, tanto frente aos princípios
fundamentais do Direito nacional, quanto à reformulação de seus
conceitos. A título de exemplo, a interrupção terapêutica
(anencefalia) não constituiria violação ao Direito à Vida, em
virtude da ausência de potencialidade de vida, visto sua
qualificação como “malformação letal do feto”, proferida pela
comunidade médica. Por outro lado, a evolução conceitual histórica
dos termos “Dignidade”, “Saúde” e “Vida”, representa a
correlação entre as ciências, a filosofia e a subjetividade
humana. Em decorrência dessa trajetória, faz-se imprescindível a
reinterpretação das normas e princípios vigentes.
Não
obstante, a inabilidade dos magistrados em aderirem-se ao progresso
social que se realiza a partir dessas ressignificações, evidencia
um “Habitus” jurídico. Estendendo essa questão sob a pauta da
ADPF nº 54, torna-se inequívoca a ponderação falha dos princípios
constitucionais ao se criminalizar a antecipação do fim da
gestação. Mantê-la na esfera das ilicitudes implica,
necessariamente, na condenação psicológica, emocional e,
potencialmente física, da futura mãe. Obrigar, por meio do poder
simbólico normativo, a perpetuação de uma gravidez inviável é
condenar ao sofrimento e ausentar – ativamente – a dignidade
humana. Desse modo, a negligência citada frente à reformulação
terminológica ocorre em decorrência desse Habitus, uma disposição
incorporada pela conduta judicial que reflete, também, referências
de gênero, em função da prevalência quantitativa de juízes.
Ademais, a tentativa de se introduzir novas significações no âmago
do ordenamento jurídico, assim como apresentar a referida ADPF a
Suprema Corte, exprime a luta pelo poder simbólico e sua
dinamicidade, como exposto por Bourdieu. Trata-se, por fim, do
conflito pela apropriação da força simbólica contida nos textos
jurídicos e sua posterior capacidade de mobilização no âmbito interno do Campo. Surge, daqui, outra problemática: a autorreferência do
Sistema que envolve a criação, interpretação e aplicação
normativa. Esse procedimento, que suscita a promiscuidade entre as
estruturas legais e de legitimação, adquire ares artificiais de
legitimidade, cessando o poder que imbuí o consentimento popular e,
consequentemente, as probabilidades de se promover alterações reais
às normas positivadas, propiciando a manutenção do Habitus
vigente e seu respectivo ordenamento.
(Caio Laprano - 1º Ano - Noturno)
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