O
direito, uma vez que é moldado pelas sociedades das quais faz parte, se se
mantém sempre estagnado e imutável, uma hora deixa de ser uma positivação das
vontades dos indivíduos os quais protege, e torna-se insuficiente para regê-la,
o que, por sua vez, causa grande insatisfação na sociedade. Em resposta a essa
problemática, o filósofo Pierre Bourdieu propõe o que ele chama de
historicização da norma, que são progressivas alterações nas normas de cada
ordenamento jurídico, visando com que estas convirjam com as demandas sociais
de cada tempo. Deste modo, tais mudanças deveriam ser feitas pelos operadores
do Direito (juízes, advogados, promotores), pois estes são os que se relacionam
de forma mais próxima com a realidade social de cada Estado, se distanciando
cada vez mais da noção kelseniana de que o Direito é integralmente autônomo e
que não deve ceder a nenhuma pressão social.
De
forma correlata com a realidade contemporânea, no Brasil, temos diversos casos
em que o Supremo Tribunal Federal (STF) foi acionado para decidir a cerca de certas
demandas de grupos minoritários que não sentiam seus direitos resguardados pela
legislação vigente. Exemplo disso são as mulheres, que dia a após dia lutam por
maior igualdade e representatividade em nossa sociedade e que veem seus
direitos sexuais e reprodutivos um tanto restritos em nome de interesses morais
e religiosos daqueles que legislam em nome do povo. Assim, convém trazer a tona
o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, na qual uma
gestante de feto anencéfalo contesta a interpretação do Código Penal em virtude
de condenar o aborto em casos como o seu.
A
partir desse exemplo pode-se fazer depreender alguns preceitos de Bourdieu no
voto elaborado pelo Ministro Marco Aurélio, também relator do caso, que entende
que a historicização da norma, por exemplo, é algo necessário ao Direito
Brasileiro, uma vez que no decorrer do tempo as circunstâncias e possibilidades
mudam e, com isso, as leis também devem se alterar. Também, o critério de
neutralidade no campo jurídico é claramente sustentado, uma vez que o relator
insiste que não deve haver influência de cunho moral ou religioso em todo o
ordenamento jurídico, dada a laicidade do Estado declarada na Carta Magna.
Com
isso, vemos a utilização do espaço dos possíveis, determinado pelo francês como
todo o arcabouço jurídico disponível, como legislação, doutrina e até mesmo os
costumes, para a se concretizar uma importante conquista da população feminina
do país. Ao analisar os direitos do feto anencéfalo, visto por alguns como um
nascituro, nomenclatura utilizada para denominar aquele que ainda vai nascer,
utiliza-se da doutrina para dissipar um aparente conflito de direitos: feto x
mulher. De acordo com ela, o feto diagnosticado com ancefalia não pode ser
considerado um nascituro, pois este não possui chance de sobrevivência, de
acordo com ampla equipe médica e, por isso, não fica sob a proteção dos direitos
fundamentais dispostos no Código Civil, devendo ser, assim, respeitados os
direitos à vida, à disposição sobre seu corpo e à dignidade da mulher.
Portanto,
a decisão favorável à discriminalização do aborto de fetos anencéfalos
proferida pelo STF é um grande progresso no rol dos direitos femininos, estando
agora as mulheres munidas do direito de decidir se irão ou não prosseguir com
esse tipo de gravidez. Ademais, pode-se questionar a força de tal decisão como
lei, uma vez que não foi elaborada ou votada no Congresso Nacional, mas que,
contudo, é da mais alta ordem hierárquica do Direito Brasileiro sendo,
majoritariamente, seguida pelos magistrados de tribunais de instâncias
inferiores. Com isso, vê-se a
historicização aplicada de forma prática, não ficando fadada a simples
exposição teórica, com juízes do momento presente modernizando o Direito a fim
de proporcionar a ampliação de direitos à sociedade por um conceito construído
por Pierre Bourdieu no século passado, comprovando, assim, a atemporalidade de
seu pensamento.
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