Total de visualizações de página (desde out/2009)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

A atualidade de Pierre Bourdieu


O direito, uma vez que é moldado pelas sociedades das quais faz parte, se se mantém sempre estagnado e imutável, uma hora deixa de ser uma positivação das vontades dos indivíduos os quais protege, e torna-se insuficiente para regê-la, o que, por sua vez, causa grande insatisfação na sociedade. Em resposta a essa problemática, o filósofo Pierre Bourdieu propõe o que ele chama de historicização da norma, que são progressivas alterações nas normas de cada ordenamento jurídico, visando com que estas convirjam com as demandas sociais de cada tempo. Deste modo, tais mudanças deveriam ser feitas pelos operadores do Direito (juízes, advogados, promotores), pois estes são os que se relacionam de forma mais próxima com a realidade social de cada Estado, se distanciando cada vez mais da noção kelseniana de que o Direito é integralmente autônomo e que não deve ceder a nenhuma pressão social.
De forma correlata com a realidade contemporânea, no Brasil, temos diversos casos em que o Supremo Tribunal Federal (STF) foi acionado para decidir a cerca de certas demandas de grupos minoritários que não sentiam seus direitos resguardados pela legislação vigente. Exemplo disso são as mulheres, que dia a após dia lutam por maior igualdade e representatividade em nossa sociedade e que veem seus direitos sexuais e reprodutivos um tanto restritos em nome de interesses morais e religiosos daqueles que legislam em nome do povo. Assim, convém trazer a tona o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, na qual uma gestante de feto anencéfalo contesta a interpretação do Código Penal em virtude de condenar o aborto em casos como o seu.
A partir desse exemplo pode-se fazer depreender alguns preceitos de Bourdieu no voto elaborado pelo Ministro Marco Aurélio, também relator do caso, que entende que a historicização da norma, por exemplo, é algo necessário ao Direito Brasileiro, uma vez que no decorrer do tempo as circunstâncias e possibilidades mudam e, com isso, as leis também devem se alterar. Também, o critério de neutralidade no campo jurídico é claramente sustentado, uma vez que o relator insiste que não deve haver influência de cunho moral ou religioso em todo o ordenamento jurídico, dada a laicidade do Estado declarada na Carta Magna.
Com isso, vemos a utilização do espaço dos possíveis, determinado pelo francês como todo o arcabouço jurídico disponível, como legislação, doutrina e até mesmo os costumes, para a se concretizar uma importante conquista da população feminina do país. Ao analisar os direitos do feto anencéfalo, visto por alguns como um nascituro, nomenclatura utilizada para denominar aquele que ainda vai nascer, utiliza-se da doutrina para dissipar um aparente conflito de direitos: feto x mulher. De acordo com ela, o feto diagnosticado com ancefalia não pode ser considerado um nascituro, pois este não possui chance de sobrevivência, de acordo com ampla equipe médica e, por isso, não fica sob a proteção dos direitos fundamentais dispostos no Código Civil, devendo ser, assim, respeitados os direitos à vida, à disposição sobre seu corpo e à dignidade da mulher.
Portanto, a decisão favorável à discriminalização do aborto de fetos anencéfalos proferida pelo STF é um grande progresso no rol dos direitos femininos, estando agora as mulheres munidas do direito de decidir se irão ou não prosseguir com esse tipo de gravidez. Ademais, pode-se questionar a força de tal decisão como lei, uma vez que não foi elaborada ou votada no Congresso Nacional, mas que, contudo, é da mais alta ordem hierárquica do Direito Brasileiro sendo, majoritariamente, seguida pelos magistrados de tribunais de instâncias inferiores.  Com isso, vê-se a historicização aplicada de forma prática, não ficando fadada a simples exposição teórica, com juízes do momento presente modernizando o Direito a fim de proporcionar a ampliação de direitos à sociedade por um conceito construído por Pierre Bourdieu no século passado, comprovando, assim, a atemporalidade de seu pensamento.

Júlia Veríssimo Barbosa - Direito (noturno)


Nenhum comentário:

Postar um comentário