O debate da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 54 trouxe em pauta o aborto de anencéfalos e como um bônus, por
mais que tivesse sido tratada de forma bem rasa por alguns ministros, sendo relevante
citar que em sua maioria são homens, houve também a discussão da condição da
mulher em questões gravídicas de alto risco, de estupro e de aborto em
situações de gravidez indesejada. Argumentos filosóficos, de biologia,
bioquímica, medicina, sociológicos e de diversas outras áreas do conhecimento foram
utilizados pelos ministros e ministras para sustentar seu voto, evidenciando
que aborto de anencéfalos é um tema polêmico a ser discutido e por isso, o
indivíduo não pode basear seus argumentos em questões puramente metafísicas e
religiosas. Isso se dá devido ao fato de a religião ser preenchida com elementos
abstratos e subjetivos que vão além da compreensão humana, ou seja, a
comprovação de um Deus ou ser divino que rege todas as coisas do universo assim
como sua criação é sustentada em fé e não em ciência, com objeto de estudo, método,
hipótese, tese, desenvolvimento e conclusão.
A partir disso, utilizo de Pierre Bourdieu para a continuação
desse texto. Bourdieu afirmava que habitus é toda disposição incorporada
a partir de uma referência de classe e tendo em vista que desde Roma, o direito
é controlado e dominado por indivíduos de um estrato elevado da sociedade, que
possuem não só capital econômico como o cultural, o direito incorporou diversos
arquétipos jurídicos que vão desde a vestimenta até o discurso mais célebre que
o constituem como o conhecemos hoje: uma ciência culta integrada por indivíduos
cultos. E, como a linguagem tem poder de dominação sobre indivíduos e até mesmo
sociedades que não a dominam de forma integral, é formado o poder simbólico.
Por isso, para que haja debate entre os “comandantes” do
direito e os movimentos sociais, há o travestimento de ambas as partes em
coisas que não o são. O direito se traveste de impessoal e neutro e os movimentos
sociais travestem-se da linguagem do direito para alcançá-lo, correndo o risco
de afastar-se de sua base simples, porém complexa, e ter seus objetivos transformados
em céus carregados e nebulosos e não limpos, tornando difícil a visualização do
procedimento que a luta e a resistência tomaram, podendo fugir de seu
propósito. Então, para que o caso de abortos de anencéfalos chegasse ao Supremo
Tribunal Federal houve uma nova roupagem dada pelo movimento feminista em seu
discurso, utilizando de argumentos científicos complexos e detalhistas de áreas
distintas do conhecimento para apenas dialogar sobre a possibilidade de haver
abortos de anencéfalos. Exemplo disso é o fato de cada voto de cada ministro e
ministra ter uma lista extensa de referências bibliográficas ao final do voto,
nos mostrando que não é tão simples dialogar com o direito e quebrar a barreira
do poder simbólico assim como a do habitus.
Além disso, creio que não cabe a homens tratar de temas que
dizem respeito a mulheres. Deve haver o debate entre as duas partes, porém com
representação devida. O STF é composto por 11 ministros, sendo 9 deles homens e
2 mulheres. Não é uma representação democrática, principalmente quando há temas
que dizem respeito a mulher diretamente, afinal, por ano morrem mais de 177 mil
mulheres por abortos feitos por equipes médicas, fora os abortos feitos de
forma amadora.
A ADPF 54 foi favorável a descriminalização do aborto de
anencéfalos resultando em uma conquista de muitas que ainda devem vir para os movimentos
sociais feministas e outros que futuramente podem vir sobre outras minorias.
Contudo todo o procedimento para se chegar a essa conclusão levou há anos de
estudo para que se pudesse apenas dialogar com o direito e seu poder simbólico
adquirido pela linguagem que não é dominada da mesma forma por todos, afinal tornou-se
um habitus do direito.
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