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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Como o habitus e o poder simbólico interferem no diálogo entre o campo jurídico e os movimentos sociais


O debate da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 trouxe em pauta o aborto de anencéfalos e como um bônus, por mais que tivesse sido tratada de forma bem rasa por alguns ministros, sendo relevante citar que em sua maioria são homens, houve também a discussão da condição da mulher em questões gravídicas de alto risco, de estupro e de aborto em situações de gravidez indesejada. Argumentos filosóficos, de biologia, bioquímica, medicina, sociológicos e de diversas outras áreas do conhecimento foram utilizados pelos ministros e ministras para sustentar seu voto, evidenciando que aborto de anencéfalos é um tema polêmico a ser discutido e por isso, o indivíduo não pode basear seus argumentos em questões puramente metafísicas e religiosas. Isso se dá devido ao fato de a religião ser preenchida com elementos abstratos e subjetivos que vão além da compreensão humana, ou seja, a comprovação de um Deus ou ser divino que rege todas as coisas do universo assim como sua criação é sustentada em fé e não em ciência, com objeto de estudo, método, hipótese, tese, desenvolvimento e conclusão.

A partir disso, utilizo de Pierre Bourdieu para a continuação desse texto. Bourdieu afirmava que habitus é toda disposição incorporada a partir de uma referência de classe e tendo em vista que desde Roma, o direito é controlado e dominado por indivíduos de um estrato elevado da sociedade, que possuem não só capital econômico como o cultural, o direito incorporou diversos arquétipos jurídicos que vão desde a vestimenta até o discurso mais célebre que o constituem como o conhecemos hoje: uma ciência culta integrada por indivíduos cultos. E, como a linguagem tem poder de dominação sobre indivíduos e até mesmo sociedades que não a dominam de forma integral, é formado o poder simbólico.

Por isso, para que haja debate entre os “comandantes” do direito e os movimentos sociais, há o travestimento de ambas as partes em coisas que não o são. O direito se traveste de impessoal e neutro e os movimentos sociais travestem-se da linguagem do direito para alcançá-lo, correndo o risco de afastar-se de sua base simples, porém complexa, e ter seus objetivos transformados em céus carregados e nebulosos e não limpos, tornando difícil a visualização do procedimento que a luta e a resistência tomaram, podendo fugir de seu propósito. Então, para que o caso de abortos de anencéfalos chegasse ao Supremo Tribunal Federal houve uma nova roupagem dada pelo movimento feminista em seu discurso, utilizando de argumentos científicos complexos e detalhistas de áreas distintas do conhecimento para apenas dialogar sobre a possibilidade de haver abortos de anencéfalos. Exemplo disso é o fato de cada voto de cada ministro e ministra ter uma lista extensa de referências bibliográficas ao final do voto, nos mostrando que não é tão simples dialogar com o direito e quebrar a barreira do poder simbólico assim como a do habitus.

Além disso, creio que não cabe a homens tratar de temas que dizem respeito a mulheres. Deve haver o debate entre as duas partes, porém com representação devida. O STF é composto por 11 ministros, sendo 9 deles homens e 2 mulheres. Não é uma representação democrática, principalmente quando há temas que dizem respeito a mulher diretamente, afinal, por ano morrem mais de 177 mil mulheres por abortos feitos por equipes médicas, fora os abortos feitos de forma amadora.

A ADPF 54 foi favorável a descriminalização do aborto de anencéfalos resultando em uma conquista de muitas que ainda devem vir para os movimentos sociais feministas e outros que futuramente podem vir sobre outras minorias. Contudo todo o procedimento para se chegar a essa conclusão levou há anos de estudo para que se pudesse apenas dialogar com o direito e seu poder simbólico adquirido pela linguagem que não é dominada da mesma forma por todos, afinal tornou-se um habitus do direito.

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