A discussão acerca da ADPF 54 tange não somente os panoramas que compõem a jurisprudência atual, mas as trincheiras que o próprio Direito alcançou. O julgado presente nas pautas do STF no ano de 2012 traziam um assunto que engloba tanto a condição social brasileira, os vieses do século XXI e as obrigações da justiça moderna. Por falar em condição social, busca-se fazer referência ao significado de uma discussão acerca de aborto de anencéfalos ter chegado ao Supremo Tribunal brasileiro; o assunto trazido a tal instância revela que há muito esteve sendo ignorado ou simplesmente não resolvido na esfera pública, mesmo perante alta requisição, o que leva à necessidade de se levantar o "Descumprimento de Preceito Fundamental" para que os juristas possam ter dispositivos legais de contemplar as necessidades das gestantes. Por vieses do século XXI, entende-se justamente a necessidade de produzir um Direito atualizado que contemple as novas necessidades sociais. O Código Penal datado de 1940 jamais seria possuidor de ferramentas atualizadas ou da pré-ciência acerca das discussões envolvendo o aborto na sociedade atual. Finalmente, em se falando de obrigações da justiça moderna, pretende-se discutir as dimensões do campo jurídico e o seu limite na coerção, desenvolvimento e formação do indivíduo.
O contexto em que se fazem essas pré-afirmações atingem o pensamento de Pierre Bourdieu, que, em seu pensamento discutiu a fundo os limites e os princípios do Direito de forma nem um pouco otimista ou elogiadora. Para Bourdieu o Jurista seria "guardião da hipocrisia coletiva" e sua ciência um fruto da reprodução social que não contribuiria muito para a emancipação da sociedade. Em primeiro lugar, a fim de aplicar a teoria bourdieusiana aos influxos da sociedade no Direito, é necessário citar a crítica ao dualismo. O pensador francês criticou profundamente a separação entre sociologia e Direito esboçando uma sociologia crítica do direito e criticando o Formalismo que conceitua a ciência jurídica como uma redoma fechada que se desenvolve historicamente em função da dinâmica interna de seus conceitos e métodos,
independentemente do mundo social. Tal argumentação ataca frontalmente a Teoria pura do direito de Kelsen e o Sistema legal autorreferencial de Luhmann, ambos pensadores que defendiam a autonomia do direito. Por outro lado, acaba por criticar também o Instrumentalismo - atingindo diretamente Althusser - que firma o direito como consequência direta da determinação econômica e de seus grupos dominantes. Deste modo, para Bourdieu o direito é unido a sociologia em uma relação complementar; a sociedade dispões suas evoluções e suas vontades perante a esfera privada do direito que, também formada pelo ser humano, tece o redil das vontades individuais embasando-o na segurança de códigos e constituições.
Em segundo lugar, das disposições acerca da evolução constante da sociedade e a atual complexidade deste século a teoria de Bourdieu apresenta uma ferramenta adequada para explicação e discussão desse viés. Pierre Bourdieu desenvolveu o conceito de habitus no intuito de “escapar das ingenuidades mais grosseiras do
juridismo que consideram as práticas como produto da obediência a normas”. O juridismo em si seria a prepotência anteriormente citada do Formalismo que acentua o Direito como força autônoma e acaba por concluir que as práticas sociais são produções da obediência às leis. O habitus seria o determinante da práxis social pois parte do desejo de lembrar que, além de norma expressa e explícita ou do cálculo racional, existem outros princípios geradores de práticas. Tal conceito seria constituído de condições históricas e sociais, não sendo assim um determinismo mecânico, mas sim que se ajusta às diversas situações. Por tais situações pode-se elencar a presente discussão acerca do aborto que trouxe a historicização da norma e sua educação às necessidades sociais. Por fim, talvez sendo a discussão de maior peso sociológico e jurídico, argumentar acerca do Campo Jurídico possui conforto na teoria de Bourdieu, não em termos de paz ou tranquilidade, mas sim, porque pela primeira vez tal "lugar" foi pormenorizado e criticado,o que lhe trouxe o poder de influenciador social dentro do pensamento bourdieusiano; tal campo seria ignorado também pelos formalistas e instrumentalistas. Segundo o pensador, o mundo social seria composto por multicosmos nomeados como campos, cada um com seus interesses específicos (campo religioso, político, literário e etc), mas todos relativamente autônomos, como exposto anteriormente. Seus agentes aceitam a "regra do jogo " de cada um deles e consideram suas disposições como essenciais, e é assim com os juristas. Tais indivíduos levam outrem a a creditar no direito justamente porque eles mesmos acreditam e confiam, nesse aspecto faz-se em vista o conceito de ilusão, pois dentro do campo jurídico a fé do jurista em sua própria profissão eleva sua estima, chegando ao potencial da coerção; funciona da mesma forma que a magia, que só possui espaço e poder em um lugar de crença. Ademais, faz-se em voga os dois agentes de tal campo, os juristas teóricos e praticantes, que possuem em uma relação de antagonismo e complementaridade. Antagonismo pois vivem no embate da interpretação da lei (doutrina x prática) e complementaridade pois ambos são necessários a mística do campo. Portanto, em termos de conclusão acerca da amplitude do Campo Jurídico pode-se afirmar sua universalidade, pois sendo uma ciência criadora de uma magia coerciva que acaba por atingir a própria práxis social, vê-se que não se trata apenas do cumprimento e obediência de regras, mas do próprio convencimento de fazer o ser humano acreditar que tais verdades são absolutas tendo em vista que o jurista teoriza-as, pratica-as e atualiza-as com total convicção.
Este é um espaço para as discussões da disciplina de Sociologia Geral e Jurídica do curso de Direito da UNESP/Franca. É um espaço dedicado à iniciação à "ciência da sociedade". Os textos e visões de mundo aqui presentes não representam a opinião do professor da disciplina e coordenador do blog. Refletem, com efeito, a diversidade de opiniões que devem caracterizar o "fazer científico" e a Universidade. (Coordenação: Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa)
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