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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

A mobilização do Direito contra os poderes simbólicos responsáveis por marginalizar corpos femininos

     Imersa em uma estrutura social entranhada por poderes simbólicos, a prática jurídica tem sua movimentação orientada por uma tríplice: as relações recorrentes dentro do campo jurídico, as ofertas propostas por seus agentes e a demanda dos grupos sociais. Ao apresentar, no século XX, tais propulsores (e, também, agentes limitantes) para o Direito, o sociólogo Pierre Bourdieu analisa a formação e os efeitos de razões públicas que mobilizam a realidade social.

     O campo jurídico possui como caracterização primordial a atuação em prol da função social. Entretanto, dado que não se pode negar a ação constante de micro e macropoderes, bem como a imposição de suas significações dentro do Direito, tem-se o descumprimento não raro da proteção de grupos minoritários constantemente fragilizados pela estrutura. Dentro desse âmbito de lacunas de desamparo, espera-se do Poder Legislativo um reparo nas leis positivadas, enquanto as demandas sociais aguardam do Judiciário uma interpretação cabível das normas, estas que devem ser orientadas não só pelo texto, mas também pela realidade social e proteção da dignidade da pessoa humana.

     Marcadas por uma constante subtração de seus preceitos fundamentais, as mulheres são alvos certos de uma estrutura social na qual a violência simbólica proposta pelo sistema patriarcal se infiltra e forçosamente impõem sua significação. Parafraseando a filósofa e feminista brasileira Djamila Ribeiro, nós, mulheres, ainda lutamos para que a sociedade nos reconheça como pessoas, sujeitas de direitos e garantias que nos preservem como seres humanos. Não obstante, o moderno Immanuel Kant também prevê que todos, sem distinção, sejam tratados como fins em si mesmos, assegurando a não instrumentalização de indivíduos, bem como a negação de ações de desumanização.

     Agindo mediante constantes requisições populares e necessidade interpretativa dada a existência de lacuna jurídica, o STF – Guardião da Constituição – propõem, em 2012, a ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) a fim de decidir acerca da constitucionalidade (ou não) da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos como conduta tipificada no Código Penal. Sob requisição da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), o Direito mostrou-se permeável ao entender que as gestantes são as únicas pessoas legítimas para decidir pela continuidade (ou não) de uma gravidez com efeitos como tal. A decisão favorável passa, então, a obter força simbólica como jurisprudência, haja vista que fora reverenciada pela maioria e fundada na realidade e interesses sociais.

     Em uma concorrência pelo direito de dizer o Direito, a demanda social mostrou-se estratégica ao vestir a roupagem do jurídico para se impor de alguma forma, obtendo – mesmo que a passos pequenos – certa possibilidade de mulheres dizerem e responderem sobre seus próprios corpos e vidas. Ao alterar a historicização da norma, ou seja, ao modificar as fontes do Direito à uma nova possibilidade de interpretação legítima, a prática jurídica mostra a possibilidade de deslocamento dentro do espaço dos possíveis, este delimitado à interrupção da gravidez somente em caso de diagnóstico de doença anencefálica nesse caso em específico.

     O espaço dos possíveis, conceito estruturado por Bourdieu, é designado como um conjunto de filtros que limitam a maleabilidade das modificações do Direito. Logo, decisões como a ADPF 54 são demarcadas por argumentos que respeitem a imposição da doutrina, jurisprudência e, também, embasamentos científicos. Seguindo tais pressupostos, exibirei fundamentos favoráveis à antecipação terapêutica do parto em situações de gravidez de feto anencéfalo que se demonstraram em consonância com as barreiras acima citadas.

     Segundo exposição da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), anencéfalos não são vidas extrauterinas possíveis, tendo em vista que a sobrevida do feto é restringida, em seu máximo, a algumas horas após o parto. Ademais, levando a caracterização como natimortos neurológicos, dado que não possuem substrato neural para experimentar sensações humanas, e ainda, uma interpretação jurídica que considera o momento da morte sendo a falência cerebral, é possível concluir que, a gestação de fetos com tal diagnóstico seria caracterizada por uma maternidade sem possibilidade de formação humana, mães que carregariam durante 9 meses a projeção de filhos que, desde a etapa da neurulação, já se foram.

    Considerada como uma gravidez potencialmente perigosa dadas as más formações do feto anencéfalo, a manutenção forçosa desta gestação caracteriza-se como um sério descumprimento a preceitos fundamentais, haja vista não só a forte imposição do Estado sobre corpos femininos, delimitando suas liberdades e direitos sexuais, como também incisiva violência psicológica ao designar mulheres como instrumentos em prol de uma vida que não o é, fajutas moralidades e reprodução de habitus patriarcais que se dizem em consonância com a existência, exceto quando esta refere-se a corpos femininos e sua dignidade.

     A caminho da finalização, faz-se interessante ressaltar a visão de Pierre Bourdieu acerca da composição do Direito: razão associada à moralidade. Na decisão exibida pela ADPF 54, a razão é exposta por argumentos de crivo científico, pela necessidade de se obstar que dogmas de fé determinem conteúdo dos atos estatais, e ainda, o respeito às cláusulas pétreas das normas constitucionais. Seguindo pelo campo da moralidade, tem-se a necessidade humana de que mulheres sejam tratadas com dignidade e em acordo com seus direitos e garantias fundamentais, em um caminho capaz de construir e alcançar a almejada igualdade de gênero. Mulheres decidindo sobre seus corpos e seus desejos, com autonomia de suas liberdades, e não fadadas a uma realidade solitária de serem consideradas entes designados à reprodução e à incubação desse resultado. 

Vitória Garbelline Teloli - 1º ano Direito (noturno)

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