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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Nascido é o vivo


  Em sua discordância ao formalismo da teoria pura do Direito de Kelsen e ao instrumentalismo acerca da concepção marxista do direito, em “O Poder Simbólico” de 1989, Pierre Bourdieu argumenta que o âmbito social possui influência sobre a autoridade dentro do campo jurídico e, mesmo que afirme que esta autoridade represente a violência legitimada pertencente ao Estado, ela não se delimita a esta única função.  O ordenamento jurídico é constituído em sua racionalidade pela coerência de suas ações e, ao mesmo tempo, pelas forças encontradas em seus fundamentos.
   Existem, para o autor, as estruturas simbólicas do direito e as instituições que o produzem. Como a ADPF 54 do Supremo Tribunal Federal de 2012, por 8 votos a 2, os operadores decidiram tornar legal a opção de aborto no caso de fetos com anencefalia. Nesta situação, em específico, o direito não foi utensílios do poder do Estado. Porém é de notável relevância que, na época da decisão, o Brasil era o quarto país com mais casos de anencefalia, segundo a Organização Mundial da Saúde, o que configurava total contextualização para o debate judicial da questão- e até retardo sobre este-, o que Bourdieu maneja como oferta e procura.
   O Ministro Ricardo Lewandowski cita Celso Delmanto analisando o aborto terapêutico, confirma o que Delmanto defendeu, que “não legitima o chamado aborto eugenésico, ainda que seja provável ou até mesmo certo que a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável”. Ademais, este fundamentou seu voto contrário defendendo uma leitura inexorável da Constituição Federal e do Código Penal Brasileiro- uma visão que não parece muito acatar a cinesia jurídica-, e função de legislador negativo do Supremo Tribunal Federal. A dubiedade que aqui persiste é se isto seria apenas seu habitus, como compreende Bourdieu, ou real posição.
   Quando Bourdieu redige “(...) Faculdade superiores, como teologia, direito ou medicina, como nota Kant em O Conflito das Faculdades, estão claramente investidas de uma função social.”(BOURDIEU, 1989 , p.215). Ou seja, pode se pensar que os campos do direito podem sair, de forma extremamente breve, de suas linhas de normalidade e recorrer as medidas cabíveis. Segundo Bourdieu, o trabalho jurídico exerce efeitos múltiplos, ao fixar uma decisão exemplar, ela própria serve de modelo a decisões seguintes, o que favorece a lógica do precedente. O “’Dar à luz’ é dar a vida; não é dar a morte.” metaforizado pelo Ministro Ayres Britto em seu voto, representa o martírio voluntário, o não utilitarismo do corpo feminino e a autonomia por parte da gestante, permitindo que seja considerada a certeza de um percurso histórico já versado ao invés de uma improvável vida de poucas horas, que seja compreendida a pessoa em si, não em útero produtor de transplantes, e que, finalmente, o direito cumpra com sua função, mesmo ora pelos seus espaços possíveis.
    Dessa forma, a priorização, neutralização e universalização compreendem que o sentido jurídico se afigure do sentido universalizante, fundamentado pela sua coerência interna. O ordenamento jurídico caracteriza se um dos fundamentos da manutenção da ordem simbólica, porém não a faz sozinho e imune. O tema tratado na ADPF 54, por exemplo, possuía, e mesmo sendo uma decisão concretizada, ainda possui, sua aura repleta de fragmentos morais, religioso e do próprio patriarcado. O veredito, resultado da “luta simbólica” dos tribunais funda, paulatinamente, as conquistas graduais dos socialmente, economicamente e juridicamente conquistados.


Amanda Cristina da Silva-  1º Direito Noturno

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