Em sua discordância ao formalismo da teoria pura do Direito
de Kelsen e ao instrumentalismo acerca da concepção marxista do direito, em “O
Poder Simbólico” de 1989, Pierre Bourdieu argumenta que o âmbito social possui
influência sobre a autoridade dentro do campo jurídico e, mesmo que afirme que
esta autoridade represente a violência legitimada pertencente ao Estado, ela
não se delimita a esta única função. O ordenamento
jurídico é constituído em sua racionalidade pela coerência de suas ações e, ao
mesmo tempo, pelas forças encontradas em seus fundamentos.
Existem, para o autor, as
estruturas simbólicas do direito e as instituições que o produzem. Como a ADPF
54 do Supremo Tribunal Federal de 2012, por 8 votos a 2, os operadores
decidiram tornar legal a opção de aborto no caso de fetos com anencefalia. Nesta
situação, em específico, o direito não foi utensílios do poder do Estado. Porém
é de notável relevância que, na época da decisão, o Brasil era o quarto país
com mais casos de anencefalia, segundo a Organização Mundial da Saúde, o que
configurava total contextualização para o debate judicial da questão- e até retardo
sobre este-, o que Bourdieu maneja como oferta e procura.
O Ministro Ricardo Lewandowski cita Celso Delmanto analisando
o aborto terapêutico, confirma o que Delmanto defendeu, que “não legitima o
chamado aborto eugenésico, ainda que seja provável ou até mesmo certo que a
criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável”. Ademais, este
fundamentou seu voto contrário defendendo uma leitura inexorável da
Constituição Federal e do Código Penal Brasileiro- uma visão que não parece
muito acatar a cinesia jurídica-, e função de legislador negativo do Supremo
Tribunal Federal. A dubiedade que aqui persiste é se isto seria apenas seu habitus, como compreende Bourdieu, ou
real posição.
Quando Bourdieu redige “(...) Faculdade superiores, como teologia, direito ou medicina, como nota
Kant em O Conflito das Faculdades,
estão claramente investidas de uma função social.”(BOURDIEU, 1989 , p.215). Ou
seja, pode se pensar que os campos do direito podem sair, de forma extremamente
breve, de suas linhas de normalidade e recorrer as medidas cabíveis. Segundo
Bourdieu, o trabalho jurídico exerce efeitos múltiplos, ao fixar uma decisão
exemplar, ela própria serve de modelo a decisões seguintes, o que favorece a
lógica do precedente. O “’Dar à luz’ é dar a vida; não é dar a morte.” metaforizado
pelo Ministro Ayres Britto em seu voto, representa o martírio voluntário, o não utilitarismo
do corpo feminino e a autonomia por parte da gestante, permitindo que seja
considerada a certeza de um percurso histórico já versado ao invés de uma improvável
vida de poucas horas, que seja compreendida a pessoa em si, não em útero produtor
de transplantes, e que, finalmente, o direito cumpra com sua função, mesmo ora
pelos seus espaços possíveis.
Dessa forma, a priorização,
neutralização e universalização compreendem que o sentido jurídico se afigure
do sentido universalizante, fundamentado pela sua coerência interna. O ordenamento
jurídico caracteriza se um dos fundamentos da manutenção da ordem simbólica,
porém não a faz sozinho e imune. O tema tratado na ADPF 54, por exemplo, possuía,
e mesmo sendo uma decisão concretizada, ainda possui, sua aura repleta de
fragmentos morais, religioso e do próprio patriarcado. O veredito, resultado da
“luta simbólica” dos tribunais funda, paulatinamente, as
conquistas graduais dos socialmente, economicamente e juridicamente conquistados.
Amanda Cristina da Silva- 1º Direito Noturno
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