Segundo a teoria de Pierre Bourdieu, existem
diferentes campos presentes nas sociedades, e a totalidade desses campos é
muito mais complexa do que imaginamos. Trazendo isso para o campo jurídico,
nota-se que o embasamento para a sustentação das argumentações – de ambas as
posições – é, majoritariamente, construído a partir de uma conversa inter-campos. Ou seja, há interação entre a esfera jurídica com campos como
os da biologia, medicina, religião, com o social, entre outros. No caso da ADPF
54, essa interação pode ser constatada ao longo de todo o julgado, mas aqui irei
restringir a análise aos argumentos dos amicus
curiae.
Ao contrário do
que é (geralmente) esperado, nem todo o capital científico foi usado para a
defesa da autonomia da vontade da mulher, assim como nem todo o religioso foi
usado como argumentação contra. Cito aqui dois exemplos. A defesa do Dr. Carlos
Macedo de Oliveira, representante da Igreja Universal do Reino de Deus,
sustentou que todos são dignos de livre arbítrio, e, nesse caso, a vontade da
mulher deve ser seguida, pois somente ela consegue mensurar o impacto que essa
gravidez tem na vida dela; temos, então, um argumento de um homem que
representa uma instituição religiosa defendendo que se assegure o direito de
escolha. A professora Lenise Aparecida Martins Garcia, do Departamento de
Biologia Molecular da UnB, representou o Movimento Nacional da Cidadania em
Defesa da Vida – Brasil sem aborto, e defendeu que a comunidade científica
deveria posicionar-se contra esse assunto, pois há ‘’falta de profundidade nos
estudos sobre essa matéria até o momento’’, e acrescentou que isso seria o caso
de um aborto eugênico; ou seja, uma mulher que atua na área das ciências
biológicas alega que não existem estudos suficientes para sustentar as posições
favoráveis. Nestes casos, portanto, houve uma quebra de expectativa em relação
aos habitus de cada grupo.
O último
exemplo parte de uma pessoa do campo científico-biológico, mas a argumentação
utilizada pela professora Lenise demonstra ser infundada quando outros membros
de campos da medicina e da biologia sustentam seus argumentos. Como é o caso da
sustentação de José Aristodemo Pinotti, que foi médico ginecologista, deputado
e professor titular por concurso emérito da Universidade de São Paulo e da
Universidade Estadual de Campinas, e explicitou a existência de dois
diagnósticos que são certezas na ecografia obstétrica: o óbito fetal e a anencefalia.
Argumentou que a medicina ‘’busca efetuar sempre procedimentos cirúrgicos
dentro do útero a fim de tratar e proporcionar melhor condição de vida aos
fetos’’, mas que não há expectativa de vida para um feto anencéfalo fora do
útero, além da gravidez nesses casos ter riscos de vida aumentados para a
mulher, e também isto deveria ser levado em consideração.
Já adentrando no campo das ciências sociais, a Dra.
Débora Diniz, professora da UnB, doutora em Antropologia e pós-doutora em
Bioética, representando o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero –
ANIS, ressaltou que o diagnóstico de anencefalia causa grande impacto para a
mulher grávida, sustentando que a obrigatoriedade da continuação dessa gravidez
seria uma ‘’experiência de tortura’’ a qual as mulheres que queiram optar pela
antecipação terapêutica do parto seriam submetidas. Coloca que essa é uma
questão, também, de ética privada, e que se deve proteger a saúde e a dignidade
das mulheres. Ou seja, não só a parte da anencefalia tornar a vida inviável
deve ser considerada, mas também a saúde física e mental da mulher.
O direito, para Bourdieu, é um meio de exercer poder,
que deveria mostrar-se neutro e racional, para que pudesse ter sua legitimidade
garantida. É necessário levar em consideração que o histórico legado do
patriarcalismo finca suas raízes de formas mais veladas, como na dominação e no
controle sobre um corpo que não lhe pertence – o feminino. Assim como o
direito, esse poder pátrio é também um poder simbólico, e direta ou
indiretamente afeta o campo jurídico, sendo necessário que o meio social
transforme o direito num sentido contrário à ordem misógina antes estabelecida,
para que o direito também se consolide como forma de transformação social. É
importante que outros campos – como os
presentes nos amicus curiae – sejam ouvidos,
para que um melhor conhecimento da complexidade do tema sirva como subsídio
para o julgador, e leve a uma melhor aplicação do direito.
Anielly S. Leite - 1º ano noturno
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