Total de visualizações de página (desde out/2009)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Diálogos inter-campos e os amicus curiae


Segundo a teoria de Pierre Bourdieu, existem diferentes campos presentes nas sociedades, e a totalidade desses campos é muito mais complexa do que imaginamos. Trazendo isso para o campo jurídico, nota-se que o embasamento para a sustentação das argumentações – de ambas as posições – é, majoritariamente, construído a partir de uma conversa inter-campos. Ou seja, há interação entre a esfera jurídica com campos como os da biologia, medicina, religião, com o social, entre outros. No caso da ADPF 54, essa interação pode ser constatada ao longo de todo o julgado, mas aqui irei restringir a análise aos argumentos dos amicus curiae.
 Ao contrário do que é (geralmente) esperado, nem todo o capital científico foi usado para a defesa da autonomia da vontade da mulher, assim como nem todo o religioso foi usado como argumentação contra. Cito aqui dois exemplos. A defesa do Dr. Carlos Macedo de Oliveira, representante da Igreja Universal do Reino de Deus, sustentou que todos são dignos de livre arbítrio, e, nesse caso, a vontade da mulher deve ser seguida, pois somente ela consegue mensurar o impacto que essa gravidez tem na vida dela; temos, então, um argumento de um homem que representa uma instituição religiosa defendendo que se assegure o direito de escolha. A professora Lenise Aparecida Martins Garcia, do Departamento de Biologia Molecular da UnB, representou o Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida – Brasil sem aborto, e defendeu que a comunidade científica deveria posicionar-se contra esse assunto, pois há ‘’falta de profundidade nos estudos sobre essa matéria até o momento’’, e acrescentou que isso seria o caso de um aborto eugênico; ou seja, uma mulher que atua na área das ciências biológicas alega que não existem estudos suficientes para sustentar as posições favoráveis. Nestes casos, portanto, houve uma quebra de expectativa em relação aos habitus de cada grupo.
 O último exemplo parte de uma pessoa do campo científico-biológico, mas a argumentação utilizada pela professora Lenise demonstra ser infundada quando outros membros de campos da medicina e da biologia sustentam seus argumentos. Como é o caso da sustentação de José Aristodemo Pinotti, que foi médico ginecologista, deputado e professor titular por concurso emérito da Universidade de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas, e explicitou a existência de dois diagnósticos que são certezas na ecografia obstétrica: o óbito fetal e a anencefalia. Argumentou que a medicina ‘’busca efetuar sempre procedimentos cirúrgicos dentro do útero a fim de tratar e proporcionar melhor condição de vida aos fetos’’, mas que não há expectativa de vida para um feto anencéfalo fora do útero, além da gravidez nesses casos ter riscos de vida aumentados para a mulher, e também isto deveria ser levado em consideração.
 Já adentrando no campo das ciências sociais, a Dra. Débora Diniz, professora da UnB, doutora em Antropologia e pós-doutora em Bioética, representando o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS, ressaltou que o diagnóstico de anencefalia causa grande impacto para a mulher grávida, sustentando que a obrigatoriedade da continuação dessa gravidez seria uma ‘’experiência de tortura’’ a qual as mulheres que queiram optar pela antecipação terapêutica do parto seriam submetidas. Coloca que essa é uma questão, também, de ética privada, e que se deve proteger a saúde e a dignidade das mulheres. Ou seja, não só a parte da anencefalia tornar a vida inviável deve ser considerada, mas também a saúde física e mental da mulher.
 O direito, para Bourdieu, é um meio de exercer poder, que deveria mostrar-se neutro e racional, para que pudesse ter sua legitimidade garantida. É necessário levar em consideração que o histórico legado do patriarcalismo finca suas raízes de formas mais veladas, como na dominação e no controle sobre um corpo que não lhe pertence – o feminino. Assim como o direito, esse poder pátrio é também um poder simbólico, e direta ou indiretamente afeta o campo jurídico, sendo necessário que o meio social transforme o direito num sentido contrário à ordem misógina antes estabelecida, para que o direito também se consolide como forma de transformação social. É importante que outros campos –  como os presentes nos amicus curiae – sejam ouvidos, para que um melhor conhecimento da complexidade do tema sirva como subsídio para o julgador, e leve a uma melhor aplicação do direito.  


                                                   Anielly S. Leite - 1º ano noturno

Nenhum comentário:

Postar um comentário