O conceito de “judicialização” difere daquele tido pelo “ativismo judicial” na medida em que o primeiro é previsto pela própria constituição enquanto o segundo além de não preposto pelo legislativo, caracteriza uma postura contrária àquela determinada para o judiciário, ou seja, a proatividade perante questões não levadas até o mesmo, mas sim buscadas pelo respectivo poder. No Brasil são nítidas as duas posturas tomadas pelos juízes, sejam do STF ou das demais instâncias, ambos tendo grande protagonismo nas decisões tomadas. Como exemplo de judicialização tem-se o caso das cotas raciais no ensino superior, decisão essa tomada positivamente pelo Supremo Tribunal Federal quanto a proposição de inconstitucionalidade pelo Partido Democrata, o qual apresenta ,entre algumas opiniões contestáveis, forte embasamento normativo na composição de sua colocação. Nesse caso, como é observado, teve-se a questão levada até o poder legislativo, com o mesmo dando parecer contrário à defesa de inconstitucionalidade, cumprindo, dessa forma, o seu papel de não abster-se de nenhuma decisão a ele apresentada (“o tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos fatos em litígios” - artigo 8 do CC).
É sabida a existência de um problema estrutural acerca da cor negra no Brasil, com indivíduos pretos e pardos sofrendo inúmeras espécies de preconceitos, principalmente aquele que os caracterizam como inferiores intelectualmente. Essa cultura racista afeta a produção e o desenvolvimento dessa etnia, como exposto por pesquisas dos economistas Akhtari e Bau, respectivamente das Universidades de Harvard e Toronto, além das pesquisas promovidas pelo instituto Insper. Tais levantamentos indicam o dano promovido pelo preconceito racial e a eficácia das leis direcionadas à inclusão dessa população nos ambientes acadêmicos. Os dados apontam que a existência de cotas raciais aumenta a perspectiva tida acerca do ensino superior e a demanda por cursos pela população negra e parda. Ademais, essas pesquisas apontam grande influência do racismo no desenvolvimento intelectual das suas vítimas, apresentando certa defasagem pelo simples fato de aceitação da inferioridade de sua posição. Dessa forma, faz mais do que necessário a criação e manutenção de cotas raciais para o desenvolvimento da população que mais sofreu no decorrer da história brasileira, sendo assim legítima a decisão tomada pelo STF.
Além disso, observa-se um viés predominantemente positivista na defesa da inconstitucionalidade, colocando diversos artigos separados da Constituição como um todo, sendo então contrários à interpretação ampla que tal amontoado de normas exige. Dentre inúmeros artigos, podemos apresentar o 3, o qual aponta: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional”. Tendo em vista tal artigo, cabem as reflexões: Como será possível construir uma sociedade justa e solidária tendo a maior parte de sua população jogada á segundo plano e marginalizada devido sua cor? O desenvolvimento nacional não é somente econômico, mas sim social, e por mais que fosse simplesmente financeiro, como desenvolver um país com mais da metade de sua população subjugada a conceitos retrógrados e criminosos?
Somente não enxergam aqueles que não querem ver, quantos negros são encontrados na sala de aula das faculdades, quantos estão ministrando essas aulas nas universidades, quantos se encontram ocupando cargos importantes no mundo dos negócios e quantos são donos de empresas de grande porte? De acordo com José Saramago, aludindo à obra “Ensaio sobre a Cegueira”: “A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos a frente”. Em um mundo onde se perdeu a “visão”, aqueles que ainda utilizam de seus olhos da maneira correta não podem calar-se ante aquilo que atinge seu olhar.
Á guisa de conclusão, é sim legítima e necessária a criação e perpetuação das cotas raciais até que o problema do preconceito racial não afete tão fortemente essa população, dificultando o seu crescimento econômico, social e pessoal. Ademais, é de suma importância a existência do fenômeno da judicialização, pois tendo o poder legislativo brasileiro como objeto de observação, não convém esperar a mudança motivada por parte dele, dada sua onerosidade e a terrível falta de representatividade existente. Por fim, tal hipertrofia do judiciário também não pode ser interpretada como a salvação da democracia e a fonte de mudanças permanente das questões sociais, mas dada a situação do país ela faz-se extremamente necessária e positiva.
Iago Fernandes, direito diurno, TXXXV
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