Uma
análise cuidadosa e apropriada sobre a interrupção da gravidez de feto
anencéfalo demanda, primeiramente, um recorte temático. Deve-se assumir,
portanto, algumas premissas: a) uma postura favorável ao aborto (que não será
aqui discutido), ao menos até um limite temporal considerado tolerável para tal
prática, abarcaria, inevitavelmente, os fetos anencéfalos; b) uma vez que não
se considera tal natureza de interrupção de gestação como aborto, resta-nos
analisar aquilo que diferencia o feto anencéfalo de um feto “comum”.
Uma
postura a favor do forçado termo de gravidez que envolva o feto desprovido de
encéfalo encontra, ao menos no caso brasileiro, um bom respaldo no Direito.
Isso porque nosso sistema jurídico é preciso ao afirmar que o fim de uma vida
humana é marcado pela irreversível interrupção da atividade cerebral. Ou seja,
o fim da atividade cerebral marca o término de uma vida. No espectro do
referido assunto, as implicações parecem claras: em um ser onde sequer há cérebro,
não pode haver vida.
Todavia, a postura adotada pelo
ordenamento nacional no que diz respeito ao critério utilizado para se
averiguar o fim de uma vida é, na abordagem bioética, questionável. Atividade
cerebral realmente é sinônimo de vida? Ainda que sob análise grotesca, a
resposta, do ponto de vista biológico, é clara: não. Mesmo quando se fala sobre
o reino animal, existem diversos exemplos onde ocorre a ausência de um
concentrado de massa encefálica. Em alguns casos sequer há a presença de um
sistema nervoso. Chegamos à primeira conclusão: há vida junto ao feto
anencéfalo. Mesmo a argumentação favorável à possibilidade de interrupção desse
tipo de gravidez é cuidadosa ao mencionar uma “inviabilidade” inquestionável de
sobrevivência desses indivíduos, questionando a possibilidade da vida vir a se
concretizar, se valeria à pena submeter a mãe a esse processo e se o ser
existente nesse ventre realmente corresponde a um ser humano. Todavia, a vida
em si não é questionada.
A discussão, então, passa a enfocar essa “inviabilidade”
de manutenção da vida. O próprio ministro do STF, Luís R. Barroso, afirma: “o
feto anencefálico não terá vida extrauterina”, comentário equivocado, pois,
ainda que as chances de sobrevivência do feto sejam baixas, existe a efetiva
possibilidade de sobrevida, ainda que por curto tempo (http://delmosaud.blogspot.com.br/2012/04/anencefalia-os-casos-de-marcela-e.html).
Estendendo-se o argumento da inviabilidade: por exemplo, o indivíduo
que possui um grave problema cardíaco pode ter, no útero materno, em uma sociedade
onde o aborto é proibido, seu desenvolvimento forçosamente interrompido? Sem
dúvida, a resposta afirmativa abre precedente para novos questionamentos, que
colocam em cheque aquilo que, ao menos para os referidos fins, compreendemos
por inviabilidade. Ora, se o argumento é, por si só, as baixas chances da vida
ter continuidade, ou, por mais absurdo que seja, a própria ausência da condição
humana, poderia o indivíduo anencéfalo ser descartado depois de nascer?
Até
que ponto a inviabilidade deve ser considerada para se autorizar a interrupção
de uma gravidez? A situação fica ainda mais delicada ao se levar em conta que a
anencefalia se manifesta em diferentes níveis. Ademais, existem os pendentes
embates no meio ético e científico no que se refere àquilo que efetivamente
caracteriza a condição humana. A referida prática deveria ser descriminalizada
em um ambiente de tamanhas incertezas?
Higor Caike Direito, Noturno - 1º ano
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