Diferente
do que pensavam os marxistas estruturalistas, hoje, ao se falar de direito e poder, pode-se atestar a existência
de uma estrutura dos sistemas simbólicos. Percebe-se que as decisões no campo jurídico são alinhadas a uma ética
especifica dele, de forma que as decisões deste tendem a moldar sua forma. Portanto,
não se trata de uma relação simples de atos de poder. Em 2012, os ministros do STF
decidiram (8 a 2) pela possibilidade de interromper a gravidez de feto
anencéfalo. Neste caso, se o Direito fosse um forma presa em si mesma, prevaleceria
a primeira interpretação do conjunto normativo penal, apontada pelo autor da ADPF
e por alguns ministros, de que a antecipação terapêutica do feto anencéfalo é
crime. Contudo, se fosse feito o Direito apenas por pressão de movimentos
sociais, já deveria ser liberado, diante do movimento feminista, o aborto como
um todo.
A
isso Bordieu dá o nome de “espaço dos possíveis”, o qual funciona segundo uma
lógica interna que pode determinar um universo de soluções jurídicas, mas deve se
basear, como constantemente fazem os ministros, na literatura jurídica (veja-se
o ministro Britto ao argumentar que “o desfazimento da gravidez anencéfala só é
aborto em linguagem simplesmente coloquial, assim usada como representação de
um fato situado no mundo do ser – kelsenianamente
falando”). É nítida a existência do espaço dos possíveis na fala do Ministro
Britto, quando diz “Decisões judiciais são oferecidas exatamente segundo o
objeto apresentado para a decisão. Portanto, não estamos falando de introduzir no
Brasil a possibilidade de aborto, menos ainda de aborto em virtude de qualquer
deformação, mas a questão da anencefalia que diz com a possibilidade ou não,
potencialidade ou não de vida”. Por isso, não basta que, utilizando das palavras
do Ministro, se constate que o aborto “é uma realidade do mundo do ser”, mas
também que seja “objeto transplantado para o mundo do dever-ser jurídico
enquanto conteúdo específico no bloco normativo penal que estou a comentar”. Ou
seja, mesmo que um ministro como Cármen Lúcia traga uma ideologia feminista (habitus, fruto da formação), ela deverá adaptá-la
à forma do direito, como a mesma afirma a fazer –
“ Dundamentei o meu voto, tal como fez o Relator, Ministro Marco Aurélio,
exatamente no princípio constitucional da dignidade da vida e também no direito
à saúde, mas principalmente no direito à dignidade da vida” – para que tenha legitimidade
dentro campo (capital simbólico). Percebe-se, assim, que afrontar diretamente a
moral no campo jurídico é algo muito difícil.
Portanto,
as decisões sempre objetivam expressar neutralização e racionalização para
obter legitimidade, ainda que saibamos que nada é neutro ou universal, e é por
isto que argumentos contrários podem ser ambos legitimados pelo discurso
jurídico, pois ambos podem fazer ciência jurídica através da mobilização da
natureza do direito (bruto) por hermenêuticas diversas (mundo). Daí a
importância da invenção por parte dos magistrados em favor da expansão dos horizontes
jurídicos, ao construir juridicamente mudanças e inovações para a sobrevivência
do sistema. E, também, a importância da autolimitação do sistema, fruto da
concorrência entre os diferentes intérpretes do Direito, a qual, ao proporcionar uma interpretação
regulada, pode garantir, por exemplo, uma certa segurança do Direito frente as,
frequentemente alternantes, ondas ideológicas.
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