Bourdieu, em sua análise a cerca do Direito, configura seu campo de possibilidades numa balança entre o formalismo e o instrumentalismo. Assim, o instrumentalismo seria o Direito construído mediante às demandas sociais, e o formalismo seria a autonomia relativa do Direito.
Com relação ao julgado de aborto de anencéfalos relatado por Marco Aurélio, vemos que configura, essencialmente, um exemplo da realidade que Bourdieu tentou atribuir ao Direito, à medida que nesse julgado é considerada procedente a inconstitucionalidade da interpretação de que o aborto de anencéfalos é uma conduta típica, mas ao mesmo tempo não retirou a tipicidade da conduta do aborto.
Há, portanto, uma confluência da demanda social por direitos da mulher no que tange o direito à saúde, à dignidade, à liberdade e à privacidade, à liberdade no campo sexual, à autonomia, e o formalismo jurídico do Código Penal.
A questão se extende, ainda, de maneira inversa, a partir do formalismo atuando como preservador dos princípios constitucionais do direito à saúde, à dignidade, à liberdade e à privacidade, à liberdade no campo sexual e à autonomia, que se contrapõe a um julgamento moral e religioso da conduta da mulher.
Nesse sentido, quando Marco Aurélio faz uma retrospectiva do Constitucionalismo brasileiro, percebemos claramente o conflito entre formalismo e instrumentalismo, configurando uma autonomia relativa do direito (inclusive, na Constituição de 1988, apesar do Estado laico, esta menciona a proteção de Deus, mesmo que sem relação com o âmbito jurídico).
Outra questão que Bourdieu atribui ao Direito é a utilização de seu campo como elemento da neutralidade. Com efeito, vemos que o julgado argumenta a partir de princípios jurídicos quando diz que não pode ser evocada a saúde da criança e do adolescente nem a dignidade do princípio da dignidade humana para proteger o feto anencéfalo, pois este carece de potencialidade de vida. Como também a explicação do caráter não absoluto do direito a vida, e a necessidade de proteção do direito à saúde, à dignidade, à liberdade e à privacidade, à liberdade no campo sexual, à autonomia e à proporcionalidade. Esses princípios são interpretados por Marco Aurélio com fundamentação cientifica e filosófica (menção de dados científicos a cerca da condição de anencéfalo e da condição humana de fim em si mesmo de Kant), estimulando a neutralidade do ordenamento jurídico.
A neutralidade também entra em outro aspecto do julgado, quando Marco Aurélio menciona que legislador do código de 1940 não poderia tratar sobre o aborto de anencéfalos, porque não havia tecnologia para tal. Mas esse legislador procurou garantir a proteção da saúde e a dignidade da mulher com relação ao aborto do caso de estupro (neutralidade do ordenamento à medida que assegura os mesmos princípios). Assim, por não haver como a mulher descobrir a condição do feto, essa situação não foi regularizada. Quando a ciência avança nesse sentido, é necessário que o direito aja de maneira neutra e proporcione uma alternativa à antecipação do sofrimento da mulher.
Sem embargo, a questão da menção do legislador, por Marco Aurélio, representa outra questão que vai ao encontro da perspectiva de Bourdieu, que é a interdependência do doutrinador e do operador do Direito, na luta simbólica para a determinação de quem dita o Direito.
No caso do julgado, o operador pode ter agido de maneira instrumentalista, por ter protegido a mulher em detrimento do Código Penal, como também formalista por ter agido conforme os ditames da Constituição em favor de uma pressão da moral e da religião. De qualquer forma, adotou uma postura de delimitar a vontade da lei do Código Penal e dos princípios constitucionais, o que pode ou não coincidir com a vontade do doutrinador.
Em suma, podemos perceber a veracidade da análise de Bourdieu a cerca do Direito, no que tange as suas dicotomias, a luta significativa por recursos no campo jurídico, os limites da possibilidade de atuação de seu campo, mediante o instrumentalismo e o formalismo, e a neutralidade que propulsionada seus argumentos e formulação do campo.
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